A cada árvore que Malaya e Kilat passavam no caminho para Amihan e os Dobradores de Terra, Malaya se sentia cada vez mais perturbada. Ela tinha certeza de que a Dobradora de Ar ficaria mais do que feliz em realizar a tarefa sozinha, mas Malaya não conseguia afastar o pensamento de que o que quer que acontecesse seria culpa dela. Entregar as ordens de Ulo seria dar o golpe mortal.
Não importava quantas vezes repetisse as alegações do chefe do clã para si mesma, ela não conseguia se livrar da sensação de que os Dobradores de Terra não mereciam morrer. Eles não fizeram nada de errado, exceto vir para uma ilha que provavelmente nem sabiam que era habitada.
Quando Kilat parou para descansar à beira de um riacho, Malaya não incentivou a gorila-társio a seguir em frente. Em vez disso, ela desmontou e se ajoelhou junto à água corrente.
Apesar de suas dúvidas, que escolha ela tinha? Ulo havia ordenado, e a palavra de Ulo era final. Ele havia mantido o clã seguro e protegido até então, não havia? E mesmo que quisesse desobedecer, ele já havia lhe mostrado como ela era impotente diante de sua dobra de água.
O melhor que ela poderia fazer era garantir que, quando chegasse a hora, eles encontrassem seu fim da forma mais indolor possível. Ela conhecia várias bagas e fungos venenosos que seriam mais misericordiosos do que qualquer coisa que Amihan certamente faria a eles.
Malaya encheu as mãos em concha no riacho, bebeu a água fresca e molhou o rosto. Ela levantou os olhos para a floresta ao redor, como se ela pudesse oferecer alguma sabedoria tranquilizadora.
E de certa forma, ofereceu.
Escalando o tronco de uma árvore na beira da névoa estava um inseto vermelho brilhante — uma centopeia-basilisco do comprimento de sua mão. Difícil de encontrar, ainda mais difícil de capturar. Quando ameaçada, excretava um muco venenoso que paralisava potenciais predadores. Malaya havia aprendido isso da maneira difícil na primeira vez que encontrou uma rastejando pela floresta e a pegou. Cada músculo de seu corpo ficou rígido como pedra. Passaram-se algumas horas antes que ela pudesse se mover novamente.
Malaya encaixou uma flecha, mirou e atirou. A flecha assobiou pelo ar e se cravou na árvore, prendendo a criatura no lugar. Ela correu, puxou a flecha com o inseto espetado na ponta e o levou de volta ao riacho.
Trabalhando cuidadosamente, ela abriu a barriga da centopeia com sua adaga e examinou seus órgãos com a ponta da lâmina até encontrar as glândulas com bolinhas que armazenavam seu veneno.
Malaya deixou Kilat com o gorila-társio de Amihan na linha das árvores, abaixo das encostas rochosas das montanhas orientais, e continuou a pé. A neblina estava mais fina e mais fria naquela elevação, flutuando rapidamente pelo ar. Arbustos dispersos e varridos pelo vento e aglomerados de pedras se agarravam ao cume que conectava os picos como uma fileira de dentes irregulares e levava até o vulcão adormecido da ilha, ao norte.
Ela encontrou Amihan agachada atrás de uma saliência rochosa abaixo da sela do cume e a uma dúzia de passos do caminho. Os Dobradores de Terra estavam fora de vista, mas ela podia ouvi-los descendo.
— Já era hora — disse Amihan em voz baixa quando Malaya se juntou a ela. Então, com um sorriso presunçoso, ela perguntou: — Eu estava certa, né?
Malaya suspirou. Assentiu. Entregou uma das bananas maduras que havia colhido no caminho.
Amihan pegou a fruta sem agradecer e começou a descascá-la.
— Você vai se acostumar. É como caçar ou armar armadilhas, só que nossa presa pode falar.
— E sentir.
— Ah, a maioria dos seres vivos provavelmente sente. — Amihan deu uma mordida na fruta.
— Que reconfortante.
Amihan deu de ombros. Com a boca cheia de banana, disse:
— É uma pena que você seja tão lenta. Se tivesse voltado a tempo de pegá-los no cume, onde o vento é mais forte, eu poderia ter simplesmente feito um… whoosh… splat. — Ela suspirou. — Isso teria tornado as coisas muito mais simples. Agora, talvez tenhamos que…
Amihan parou no meio da frase. Seus olhos se arregalaram de pânico e todo o seu corpo congelou.
— Ami, você está bem? — disse Malaya, tentando soar genuinamente surpresa e preocupada. — O que há de errado? — Ela tocou o ombro da Dobradora de Ar e sentiu todos os músculos endurecidos pela tensão. — Ah, não… Acho que essa banana estava estragada. Vou buscar ajuda!
Malaya correu na direção dos gorila-társios, muito consciente do que havia de errado com a fruta: ela havia injetado uma quantidade mínima do veneno da centopeia-basilisco.
Antes de alcançar a linha das árvores, ela deu a volta em um arco suficientemente amplo para ter certeza de que ninguém ouviria sua aproximação. Quando alcançou os Dobradores de Terra, ficou aliviada ao encontrar a mãe e a filha na retaguarda do grupo.
Elas haviam parado para examinar o interior de uma pedra que uma delas provavelmente tinha rachado com dobra de terra.
— Veja o brilho vermelho nessas estrias pretas! Tão incomum entre todo esse basalto, a mãe estava dizendo à filha enquanto Malaya lentamente entrava em seu campo de visão, com as mãos levantadas e as armas embainhadas.
A jovem notou Malaya primeiro e cutucou sua mãe. Malaya parou a cerca de três passos de distância.
— É você — disse a mulher mais velha, tentando esconder a surpresa e o medo. — Das cachoeiras.
— Por favor, não chame seus guardas — disse Malaya rápida e suavemente, com as palmas ainda levantadas e o coração ainda martelando. Ela respirou fundo, esperando que os guardas estivessem longe o suficiente para não ouvir. — Eu não vou machucar vocês. — Ela gesticulou para si mesma. — Eu sou Malaya.
A filha olhou para a mãe, que observava Malaya como se ela fosse uma criatura perigosa. Mas nenhuma delas chamou os guardas.
— Você é uma das nativas? — perguntou a filha, olhando Malaya de um jeito que a fez ficar subitamente consciente de seus pés descalços e pele exposta. — Antes de nos atacar outro dia, não pensávamos que alguém morasse aqui.
— Não era para ser um ataque. Estávamos apenas tentando pegar suas coisas para que vocês saíssem da ilha.
A mãe colocou a pedra rachada que estava examinando no chão e deu um passo à frente da filha.
— Mas vocês mataram três dos nossos guardas.
Malaya balançou a cabeça, com as mãos ainda levantadas.
— Não matamos seus guardas. — O que era na maioria verdade. Os dois primeiros desapareceram antes mesmo de ela descobrir o grupo. Quanto ao outro… Ela não tinha certeza do que Amihan fez com ele.
A filha olhou novamente para a mãe, que estava pesando as palavras de Malaya. Depois de um momento, a mãe perguntou:
— Malaya, não é?
Malaya assentiu.
— Eu sou Yuming, e esta é minha filha, Qixia… Por que você quer que deixemos a ilha?
— Não é seguro para vocês aqui.
— Por quê?
Malaya considerou quanto revelar.
— Esta ilha pertence ao nosso clã.
A filha, Qixia, espiou de trás da mãe, Yuming.
— Clã? — Seus olhos foram para o cabelo curto de Malaya por algum motivo. — Você é da Nação do Fogo?
— Não pertencemos a nenhuma nação — corrigiu Malaya. — Só queremos viver em paz. Por favor, fale com o resto do seu grupo – convença-os a sair imediatamente.
O pedido de Malaya foi recebido com silêncio. Ela podia ver nos olhos de Yuming que a mulher mais velha estava tentando decidir o que dizer ou fazer a seguir. Finalmente, Yuming deu um passo cauteloso à frente.
— Se você pudesse nos levar até seu… que termo vocês usam… “Matriarca”? “Senhor”? “Chefe”? Quem quer que esteja no comando do seu clã. Se eu pudesse falar com a pessoa, tenho certeza de que ela verá que não somos uma ameaça. Viemos aqui para aprender sobre sua ilha, e seu povo deve estar curioso sobre o resto do mundo. Uma troca mútua de informações poderia ser esclarecedora para todos nós. Imagine o que poderíamos ganhar uns dos outros.
Malaya desejava que fosse tão simples. Deveria ser tão simples.
— Sinto muito.
A decepção nublou o rosto de Yuming.
— Obrigada pelo aviso, mas levei anos para descobrir a localização da sua ilha e, depois, meses navegando pelo Mar do Sul para realmente encontrá-la. Três homens já perderam a vida no processo. Você deve entender que não podemos partir agora.
Malaya cerrou a mandíbula. Isso não estava indo como ela imaginou. Por que elas não a ouviam? Por que estavam tão determinadas a ficar quando ela deixou claro que não eram bem-vindas?
— O que já aprendemos aqui é suficiente para encher dezenas de pergaminhos — acrescentou Qixia. — Você sabe quanto de sua flora e fauna existe apenas nesta ilha?
Malaya assentiu, tendo passado muito tempo ouvindo as conversas deles.
A expressão de Yuming suavizou e ela deu mais um passo à frente, levantando as mãos como se fosse para um abraço.
— Fique conosco. Seja nossa guia. Mostre-nos sua casa.
Por mais que Malaya quisesse, ela desejava que Yuming, Qixia e seus companheiros vivessem.
— Deixe-me ser clara. — Malaya apontou para a neblina na direção do corpo paralisado de Amihan. — Há alguém atrás das rochas, logo após a trilha à frente. Nosso chefe ordenou que ela tirasse suas vidas.
Mãe e filha viraram a cabeça na direção indicada por Malaya, como se Amihan fosse se materializar na névoa naquele momento. Quando isso não aconteceu, Yuming voltou a se virar. Era claro em seu rosto que ela considerava a ameaça um blefe.
— Você só está tentando nos assustar.
— Prometo que não estou.
— Temos nossos guardas.
— Eles não teriam chance.
Novamente, Yuming demorou um momento para considerar suas opções.
— Por que seu povo está tão determinado a manter os estrangeiros afastados? — ela perguntou.
Malaya hesitou. Nem a razão, nem as ameaças funcionaram. Então Malaya decidiu tentar a honestidade.
— Por causa de Yungib — disse, perguntando-se se era a primeira vez na história que esse nome era falado a estranhos. — O espírito da caverna. É dever do nosso clã proteger o espírito… a qualquer custo.
Mas o modo como os olhos de ambas as mulheres se iluminaram com essa nova informação deixava óbvio que a última tentativa de Malaya para dissuadi-las de continuar sua exploração havia falhado.
Yuming deu mais um passo cauteloso à frente, e agora estava a apenas um passo de Malaya.
— Podemos conhecer Yungib? — perguntou Yuming com cuidado, como se tentasse atravessar um bando de pássaros ariscos sem os assustar para o céu.
Malaya balançou a cabeça, ficando frustrada com a recusa firme da mulher em ouvir. Malaya sentiu que só precisava falar com a mulher, mas estava ficando sem coisas para dizer.
— Hum. — Yuming trocou mais um olhar com a filha, algo não dito passando entre elas. Então ela deu mais um passo à frente e estendeu a mão para as mãos de Malaya.
Malaya as puxou de volta.
— Está tudo bem — disse Yuming, e estendeu lentamente a mão novamente.
Desta vez, Malaya permitiu. As mãos da mulher eram quentes e macias, as pontas dos dedos sem calos. Ela olhou diretamente nos olhos de Malaya.
— Por favor, Malaya, seja nossa guia? — Ela pausou novamente. — Leve-nos até sua aldeia. — Pausa. — Apresente-nos ao seu chefe. — Outra pausa. — Deixe-nos conhecer o espírito da caverna.
A própria mãe de Malaya era toda de arestas afiadas. Cada frase cheia de desapontamento, cada olhar afiado com julgamento. Ela nunca havia segurado, olhado ou falado com Malaya com metade da suavidade de Yuming. Malaya ficou tão tomada pela súbita intimidade que compartilhavam que quase disse sim.
— Sinto muito — disse Malaya. — Não posso.
Yuming exalou e recuou. Enquanto ela fazia isso, Qixia deslizou um pé para a frente e bateu as mãos. Num piscar de olhos, fragmentos de rocha subiram do chão e voaram para as mãos de Malaya, amarrando-as antes que ela pudesse reagir.
Então Qixia mexeu os pulsos, e terra endurecida envolveu as pernas de Malaya até os joelhos, prendendo-a no lugar.
Malaya arreganhou os dentes e lutou contra suas amarras como um animal preso. Qixia desviou o olhar.
— Eu também sinto muito — disse Yuming enquanto olhava Malaya com o tipo de desapontamento materno com o qual Malaya estava muito mais familiarizada. — Viemos de muito longe.
Com isso, Yuming e Qixia desapareceram na névoa, deixando Malaya presa na encosta da montanha, fervendo de raiva por sua traição.
Comentar