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O Julgamento de Roku: Desapegar

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Os olhos de Roku abriram lentamente. O mundo levou um momento para entrar em foco e, quando finalmente o fez, a cabeça careca de Gyatso foi a primeira coisa que ele viu. Ele estava sentado ao lado de Roku, aparentemente dormindo ou meditando. Roku estava deitado de costas em uma pequena cabana de bambu com um telhado de palha mal montado. Finas linhas de luz solar passavam pelos espaços entre as ripas da parede, e o cheiro de fumaça de madeira e carne cozida estava no ar. Ele quase pensou estar na cabana de Ulo, mas não havia crânios de animais ou armas penduradas nas paredes.

— Eu aceito um pouco desse ensopado, por favor — disse Roku, com a voz áspera pela falta de uso.

Gyatso olhou para cima, sorrindo largamente. No entanto, seus olhos estavam avermelhados, e ele parecia não ter dormido há dias. Havia também uma profunda tristeza emanando de sua aura.

— Roku — foi tudo o que ele disse em saudação antes de gritar por sobre o ombro: — Ele acordou!

— E morrendo de sede! — exclamou Roku debilmente para quem quer que fosse que Gyatso estava falando. — Qualquer coisa, menos chá de sampaguita lunar, por favor — acrescentou.

O jovem Nômade do Ar riu.

— Como você está se sentindo?

— Ótimo. — Roku olhou para seu corpo. Havia muitos cortes e contusões, mas ele estava em muito melhor forma do que esperava. A energia transbordante que havia percorrido seu corpo na caverna havia definitivamente sumido. — Ah — disse ele, tentando se sentar —, eu usei dobra de terra.

Gyatso o ajudou.

— Eu vi. Você parecia muito com um Avatar. — Roku pareceu satisfeito.

— E dobra de ar — acrescentou.

— Isso eu não vi. Você tem certeza?

— Mais ou menos. Foi na Caverna Sagrada, então não sei se conta.

— Provavelmente conta — disse Gyatso. — Você dobrou água também? Já estou falando com um Avatar plenamente realizado?

— Ainda não. — Roku se mexeu e uma dor atravessou seu ombro. — Algum treino extra provavelmente me faria bem.

— Concordo. — Então, mais sério: — Mas não tive mais problemas com minha dobra de ar desde que comecei a falar sobre Yama.

Roku assentiu, orgulhoso de seu amigo.

— Você me encontrou na Caverna Sagrada?

— Agora é mais um Poço Sagrado, mas sim.

Roku lembrou-se disso.

— Quanto tempo fiquei desacordado?

— Três dias.

Roku não se lembrava disso.

— Ah.

— Nós te trouxemos aqui o mais rápido que pudemos. A curandeira do clã tem tratado de você. Graças aos espíritos, ela sobreviveu ao ataque.

— Que ataque? — perguntou Roku.

— Os guardas Dobradores de Terra destruíram a vila antes de Malaya e eu os alcançarmos — explicou Gyatso. — Mas conseguimos detê-los antes que chegassem à entrada dos túneis. O clã está mantendo-os presos por enquanto, com Oh Wen e os outros dois Dobradores de Terra. Um deles confessou que a rainha negou à Companhia de Comércio do Reino do Oeste a permissão para viajar para esta ilha, já que pertence à Nação do Fogo, mas eles vieram mesmo assim. Estamos pensando que seria melhor enviá-los de volta para a Rainha Guo Xun para enfrentar a justiça em Omashu… mas Baku – um ferreiro com uma barba trançada bem legal que meio que se tornou o novo chefe, eu acho -, ele não gosta muito dessa ideia.

Roku assentiu, então fez a pergunta para a qual já sabia a resposta.

— Ulo?

— Ele não sobreviveu — disse Gyatso simplesmente. Ele não ofereceu nenhuma justificativa sobre como Roku havia feito o que era necessário, o que Roku apreciou. Ele não queria ser poupado da culpa.

— Eu tentei não matá-lo — disse Roku após um momento. — Quanto mais eu pensava nisso, mais percebia que você estava certo. — Isso era verdade no caso da ilha, mas Roku estava começando a pensar que valia de forma mais geral também. Ele teria que encontrar uma maneira de ajudar as pessoas a entenderem a verdade essencial de que ninguém estaria seguro até que todos estivessem seguros. Essa era a verdadeira tarefa que estava diante dele como Avatar.

Roku esperou que Gyatso perguntasse como ele havia se desviado tanto de sua intenção de não matar Ulo, mas Gyatso permaneceu quieto. Novamente, o silêncio parecia intencional e sem julgamento, e Roku ficou grato. Isso o fazia sentir que suas próprias intenções importavam, mesmo que ele tivesse tirado a vida de alguém. Ele contaria toda a história com o tempo.

— E Sozin? — perguntou Roku.

— Em pior estado que você — disse Gyatso —, mas vivo, graças também à curandeira do clã.

Roku exalou. O ar que ele havia lançado para cobrir o corpo de seu amigo foi suficiente para salvá-lo de ser esmagado até a morte.

— Então ele está aqui?

— Sim, mas não por muito tempo. A curandeira acha que ele precisa descansar mais alguns dias, mas suas companheiras estão determinadas a levá-lo de volta à Nação do Fogo pela manhã. Ordens do Senhor do Fogo Taiso, aparentemente.

Outro silêncio tenso caiu entre eles enquanto Roku esperava que o Nômade do Ar reiterasse sua crítica mordaz ao Príncipe da Nação do Fogo. Em vez disso, ele manteve um silêncio resignado. Não havia mais nada que ele pudesse dizer para persuadir Roku das verdadeiras intenções de seu amigo, de sua verdadeira natureza. Ambos sabiam disso a essa altura.

Ou Roku acreditava nele, ou não.

Mesmo que não quisesse, Roku agora acreditava em Gyatso. Pelo menos até certo ponto. E isso doía mais do que Roku podia articular.

Talvez ambos entendessem isso, e é por isso que nada precisava ser dito.

Roku pigarreou.

— De qualquer forma, Malaya está por perto? Gostaria de agradecer por me ajudar a não ser sacrificado a um espírito da caverna.

Gyatso abaixou a cabeça. Respirou fundo. Engoliu em seco. E antes mesmo de falar, Roku percebeu ser uma nova dor que ele havia percebido na aura de Gyatso.

— Encontraram o corpo dela ontem — disse Gyatso, com a voz grossa de emoção. — Em uma seção colapsada dos túneis.

— Oh, Gyatso — disse Roku, com o coração partido por seu amigo, que apenas começava a se curar após perder a irmã no ano passado.

Gyatso não conhecia Malaya há muito tempo, mas mesmo do breve encontro que os três tiveram na véspera do equinócio, Roku podia perceber o quão próximos eles já haviam se tornado.

Roku sentou-se e se virou de modo a ficar de frente para Gyatso. Então ele se inclinou até que suas testas se tocassem. Gyatso começou a chorar, e Roku colocou as mãos nos ombros trêmulos do jovem Nômade do Ar. Eles ficaram assim por um longo tempo.

Através das paredes flutuavam os sons da aldeia. As pessoas se moviam e conversavam tranquilamente. Alguém estava tocando flauta. Crianças riam. Pássaros cantavam. Frango-porcos grunhiam e cacarejavam.

Embora a vila tivesse sido destruída, eles já começavam a se curar. Roku esperava que Gyatso também se curasse, novamente.

Os soluços de Gyatso diminuíram. Ele se inclinou para trás, esfregou o rosto com as palmas das mãos e então ofereceu um sorriso triste, como se dissesse que ficaria bem.

— Que a chama de Malaya ilumine nosso caminho — disse Roku.

— Obrigado, amigo — disse Gyatso. — A última vez que a vi, ela estava entrando nos túneis com Sozin para mostrar-lhe o caminho para a Caverna Sagrada.

Roku pensou por um momento.

— Eu não a vi lá dentro. Sozin disse o que aconteceu com ela?

Gyatso desviou o olhar.

— Que foi um acidente. Escombros caindo.

A culpa se instalou no estômago de Roku ao perceber que havia tirado duas vidas involuntariamente naquele dia.

Gyatso parecia querer dizer mais, mas  não disse.

Será que ele achava que Sozin estava mentindo? Não. Isso não podia ser. Gyatso havia expressado suas suspeitas sobre Sozin antes, então não teria problema em fazê-lo novamente se duvidasse da versão dele. Talvez ele simplesmente não estivesse pronto para falar sobre isso.

O som de alguém subindo a escada de bambu chamou sua atenção para a entrada da cabana. Irmã Disha apareceu e se abaixou para passar pela porta, com alívio escrito em seu rosto.

— Graças aos espíritos — murmurou. Talvez ela não estivesse tão desvinculada de tudo neste mundo como dizia.

Ela se juntou a Gyatso ao lado de Roku e lhe entregou uma tigela fumegante de sopa. Morrendo de fome, ele a agradeceu, então bebeu o caldo avidamente. Tinha um gosto azedo e salgado, lembrando-lhe um de seus pratos favoritos à base de tamarindo de sua casa. Após esvaziar a tigela de tudo, exceto a carne, ele suspirou satisfeito e a colocou de lado. Então limpou a boca com as costas da mão e agradeceu novamente.

— Como nos encontraram? — perguntou agora que atendeu seu estômago.

— Lola — respondeu Gyatso, sorrindo. — Sabe, porque somos tão conectados espiritualmente.

Roku revirou os olhos. Então se virou para Irmã Disha.

— Sinto muito. Você estava certa. Eu não estava pronto.

A Monja do Ar não discutiu com ele.

— Gyatso foi gentil o suficiente para me contar tudo desde que vocês dois fugiram, mas o que aconteceu naquela caverna com o chefe do clã? Sozin está consciente, mas suas companheiras estão… relutantes em nos deixar falar muito com ele.

Gyatso olhou com interesse.

O melhor que pôde, Roku tentou explicar. Sobre a “oferta” de Ulo. Sobre seu plano de falar com Yungib primeiro. Sobre tentar evitar os ataques de Ulo sem ferir o chefe do clã. Sobre a colisão cósmica de dois espíritos inefáveis. Sobre a aparição repentina de Sozin. Sobre sua tentativa desastrosa de salvar seu amigo. E, finalmente, sobre se conectar com Kyoshi, falar com ela e acessar seu espírito para dobrar terra.

Os Nômades do Ar ouviram a história de Roku sem interrupção ou julgamento, absorvendo tudo. Quando ele terminou, ficaram quietos por um longo tempo. Eventualmente, Irmã Disha se voltou para Gyatso.

— Posso falar com o Avatar a sós, por favor?

Gyatso assentiu, então disse a Roku:

— Ainda precisamos fazer algo sobre tudo isso — e soprou uma pequena rajada que bagunçou o cabelo de Roku. — Até breve, Avatar.

Com a partida de Gyatso, Roku ficou sozinho na cabana com a mestra de dobra de ar que ele havia desobedecido diretamente. Como resultado, várias pessoas haviam morrido, o modo de vida inteiro do Clã Lambak havia mudado de curso, e o conhecimento do poder da ilha certamente se espalharia.

Quando ouviram Gyatso chegar ao fundo da escada e se afastar, Irmã Disha disse inesperadamente:

— Você e eu éramos amigos próximos em sua vida anterior.

— Éramos? — perguntou Roku, surpreso.

Ela nunca havia mencionado que conhecia Avatar Kyoshi, e ele estava tão ansioso para começar seu treinamento de dobra de ar — e tão amargo quando ela se recusou a começar a ensiná-lo — que nunca havia perguntado muito sobre sua vida. Para o Roku de apenas alguns meses atrás, Irmã Disha havia surgido para servir a um propósito específico para ele.

Irmã Disha assentiu.

— Ela era tão poderosa como Avatar quanto todos acreditam.

Roku sentou-se mais ereto.

— Você era uma de suas companheiras?

— Por mais de vinte anos. Na verdade, fui sua última companheira Dobradora de Ar.

Não é de se admirar que o Conselho de Anciãos a tenha escolhido para treinar Roku.

— Então você deve ter estado lá quando ela… — Roku parou.

Irmã Disha balançou a cabeça.

— Nos separamos dois anos antes de ela falecer.

— Por quê?

A Monja do Ar soltou um longo, pesado suspiro.

— Você sabe como quando está voando em um bisão voador, as pessoas lá embaixo diminuem cada vez mais à medida que você sobe, até se tornarem pontos que gradualmente desaparecem?

Roku assentiu.

— Kyoshi havia vivido tanto tempo, se tornado tão poderosa como Avatar, que eu acreditava que ela havia perdido a perspectiva sobre o valor inerente das vidas individuais. Não me entenda mal, você poderia estudar toda a história humana e talvez não encontraria ninguém que fez tanto bem quanto ela pelo mundo. Mas em sua busca incansável por justiça e paz, ela parecia hesitar cada vez menos ao determinar se a ameaça que alguém representava superava o direito dessa pessoa de viver.

— Após uma missão, nossa última juntos, descobrimos que um líder daofei no Reino da Terra que estávamos perseguindo era filho de um homem que ela havia executado muitos anos antes. Tudo o que ele e seu grupo de fora-da-lei haviam feito – e eles cometeram muitas das piores atrocidades que você poderia imaginar -, havia sido com o único propósito de chamar a atenção da Avatar Kyoshi para que ele tivesse a chance de enfrentá-la pessoalmente.

A pausa de Irmã Disha disse a Roku tudo o que ele precisava saber sobre o destino do homem.

— Depois que ela resolveu a questão, eu apontei como a vida daquele homem havia sido moldada pela decisão dela de matar seu pai. Eu pedi que ela considerasse quantos dos incêndios que estávamos correndo pelo mundo para apagar poderiam ter sido acesos por ela. Eu disse a ela que temia o que ela estava se tornando, o que ela poderia ser se vivesse mais cem anos. Talvez eu estivesse errada, mas quando olhei para dentro de mim, foi isso que senti ser verdade.

O respeito de Roku por Irmã Disha se aprofundou. Ele se lembrou de como era intimidante estar diante da presença feroz de Kyoshi, mesmo quando era uma sombra do que ela devia ter sido em vida. Ele não conseguia nem imaginar dizer tais coisas em seu rosto.

— Imagino que ela não tenha gostado disso.

— Para dizer o mínimo — disse Irmã Disha. — Portanto, eu parti. Compartilhei minhas preocupações com o Conselho. A notícia se espalhou, e nenhum outro mestre Dobrador de Ar estava disposto a ajudar a Avatar Kyoshi depois disso.

Roku assentiu, sem saber o que dizer. Ele pensou na garantia de Gyatso de que o Avatar era sempre exatamente quem o mundo precisava naquele momento. Poderia isso e a avaliação dura de Irmã Disha sobre Kyoshi serem verdadeiros?

A Monja do Ar limpou a garganta.

— Saiba que você não precisa ser igual à Avatar Kyoshi para ser um grande Avatar. À medida que o mundo muda, o Avatar também deve mudar. E nunca se esqueça do que ela te disse quando você se conectou com ela: tudo já está dentro de você. A verdadeira luta é interna.

— Então você não acha que precisamos mais de Kyoshi? — ele perguntou, ainda achando difícil de acreditar, apesar de tudo o que ela lhe havia contado.

— Não — precisamos de Roku. — Ela se levantou para sair. — Você deve descansar agora.

— Posso te perguntar mais uma coisa?

Ela assentiu.

— Eu sei que você disse que não estava com ela no final… mas você sabe como ela morreu? — Pois, apesar de Kyoshi ter sido o Avatar conhecido por viver mais tempo, ou humano, aliás, ninguém parecia saber como a morte finalmente a alcançou.

— Não sei — admitiu Irmã Disha. — Mas talvez ela tenha percebido que, às vezes, as pessoas nos veem mais claramente do que nos vemos a nós mesmos, e então acabou por desapegar.

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