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A Aurora de Yangchen: O Desfile

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Yangchen abriu os olhos e encarou o teto. Argila, não gelo. Ainda Bin-Er, entretanto. Ainda Yangchen.

 

Ela tinha certeza disso.

 

Deitou-se na cama e fez os exercícios que a Abadessa Dagmola desenvolvera para ela quando era mais nova. Ela pensou sobre os acontecimentos da noite anterior, relacionou-os com suas tarefas do dia seguinte, e ignorou propositalmente o caos que havia sido instaurado em sua mente ao longo desse período, estabelecendo uma conexão profunda consigo mesma.

 

A ideia era criar uma ponte resistente entre os bancos de suas memórias, mas de vez em quando a correnteza estava à tona, deixando-os ligados apenas a uma corda prestes a romper.

 

Hoje estava atipicamente confusa graças à mudança de alojamentos. Depois da invasão, os Mestres Sidao e Boma insistiram na realocação. Yangchen rejeitou todas as sugestões de Sidao para novas hospedarias. Eram provavelmente lugares que ele vasculhou previamente, com vários cantinhos de escuta e entradas secretas conhecidas apenas por ele mesmo.

 

Ela escolheu aleatoriamente um lugar para dormir. Quase aleatoriamente. Sua intuição pode ter a levado a apontar para o mapa e desembarcar numa pequena e antiga pousada, que, por sorte, possuía o piso aquecido. Yangchen não era tão boa quanto seus irmãos e irmãs quando o assunto era ignorar sensações térmicas, achava que a técnica Sopro de Fogo esgotava muito de suas reservas de energia, e o inverno de Bin-Er era uma fera cruel, carregada de malícia.

 

A localização afastada tinha um propósito além de conforto. Ela precisava da garantia de que Kavik não seria primeira parte em uma derrota dupla, uma distração forjada para dar-lhe uma vitória insignificante enquanto o roubo de fato acontecia subsequentemente quando todos baixassem a guarda.

 

O nome do garoto era Kavik. Ela sorriu. De certa forma, ela tinha ciúmes. As loucuras da noite passada se tornariam um holofote em suas memórias. Ele nunca iria esquecer do dia em que esbarrou com o Avatar duas vezes.

 

O Mestre Boma bateu na porta:

 

 — Avatar, — surgiu a voz áspera, em tom protetor — o café da manhã está servido. O Mestre Sidao disse que se quisermos manter nossa programação com os shang, você deve se alimentar logo.

 

O Avatar não presta contas aos shang, pensou Yangchen. Milhares de anos não cedem a uma década.

 

 — Estarei lá num instante. — Disse ela.

 

A interrupção desconcentrou Yangchen. Ela pensou que retomar os exercícios mentais de onde parou seria desanimador, começar de novo seria uma impossibilidade. Então não o fez. Aqui estava o perigo. Não que a sabedoria da Abadessa Dagmola não fosse eficaz, mas que Yangchen, numa frequência cada vez maior, não a seguia.

 

Ela levantou devagar, fora do costume. Às vezes esquecia que suas articulações ainda eram de uma pessoa jovem, com apenas dezessete anos de uso. Apoiou-se na parede, esperando que a nebulosidade esvaísse da sua mente, e ergueu os braços para Pik e Pak pousarem neles.

 

Eles não vieram. Verdade. Havia deixado seus lêmures voadores sob cuidado do Templo do Ar do Norte. Talvez ela devesse ter terminado de construir a ponte afinal de contas.

 

Para evitar pensar nisso, voltou sua atenção ao monte de bagunça em seu quarto. Seus documentos haviam sido movidos às pressas da Mansão Azul até aqui. Suas anotações estavam fora de ordem, seus rascunhos de discurso estavam espalhados por todo lado, e o pior de tudo, realocar seu alojamento havia dado a pessoas desconhecidas uma chance de vasculhar sua pesquisa e correspondência. O conflito poderia ter acontecido durante a transferência.

 

Yangchen moveu-se para a beirada de sua cama e pegou um rolo de papel que estava na pilha, o que Kavik tentou roubar. Ela abriu o projeto arquitetônico do antigo salão de reunião de Bin-Er sob seu colo. A construção havia sido derrubada e reconstruída tantas vezes que diversas pessoas achavam que possuíam os designs originais. Mas essa era a verdadeira versão antiga, com procedência garantida por uma fonte confiável de Yangchen.

 

Ela analisou o esquema da estrutura de canto a canto. Um bom general estudava o espaço estando um conflito prestes a eclodir ou não. Um marinheiro observava o céu mesmo quando ele estava límpido. E Yangchen fora ambos em algum momento. Se ela não conseguisse progredir em sua reunião formal hoje, teria que recorrer a métodos não tradicionais.

 

Ela notou um detalhe interessante na planta. O borrão cinza em sua mente começou a clarear.

 

Olha só, pensou. Piso aquecido.

 


 

Uma das únicas alegrias que ela podia ter em público nos dias de hoje era mexer com o Sidao. O Ministro de Relações Territoriais Especiais fazia cada vez mais presença em sua comitiva, e ele, na maior parte das vezes, agia mais como um mentor de boa conduta. Ela não deveria cair do céu montada em Nujian ao se encontrar com autoridades para fazer negociações formais. Nem planar. Ela era o Avatar, não uma ave de rapina barulhenta.

 

Caminhar até seu destino salientava o aspecto certo de dignidade. Também permitia dar sinais publicamente e se posicionar de acordo com suas escolhas de companhia. Por exemplo, a importância do ministro de território especial pode ser demonstrada a todos ao ceder a ele um assento próximo ao dela durante as procissões.

 

Em conformidade, Yangchen ensinou Nujian a exibir um trote exagerado toda vez que precisavam satisfazer para Sidao o que ele chamava de procedimento, imitando o pulo alto de animais com menos pernas. Era ridículo e fazia as crianças rirem. E de repente Sidao não queria mais acompanhá-la a caminho das conferências. Vitórias por todo canto.

 

Hoje, no frio reluzente, ela andou por Bin-Er no garrote de Nujian enquanto Boma sentava-se atrás dela na sela. Ele já estava acostumado com qualquer viagem, seja turbulenta, tranquila ou pelo céu numa tempestade. Os residentes de Bin-Er alinharam-se na rua principal para ver o Avatar. Se os faria felizes, ela mostraria seu rosto.

 

Sidao arrepiou na carruagem sem cobertura à frente dela. Ele vinha de Nanyan, perto do Pântano Nebuloso, e o frio o afetou mais do que Yangchen.

 

 — Senhora Avatar, — disse ele, virando-se em seu assento para encará-la. O tônico que usou na longa barba pendurada em seu queixo deve ter sido à base de água, pois estava congelando. — Posso lembrá-la de que aquela que domina todos os quatro elementos não pode dominar o tempo? Nossos atrasos são relevantes.

 

 — “Ah, o grão de areia que cai, o cão de caça impiedoso aos nossos pés, o raio da roda da estação,” — citou Yangchen. Toda vez que Sidao ficava meio irritado por conta do cronograma, ela gostava de recordar ditados de tempos passados para lembrá-lo do real significado do tempo numa visão ampla. — Dez toneladas de bisão correndo pelo chão dará a sensação de um terremoto e destruirá propriedades. Você pode ir à frente e avisar os shang que estamos atrasados.

 

Sua permissão para sair fez com que Sidao hesitasse. Eu sei que você está na folha de pagamento deles, pensou ela. Mostre-me quem são seus verdadeiros mestres, quem você realmente tem medo de desagradar.

 

Com um olhar reprovador, Sidao pediu que seu motorista acelerasse. Ali estava. Deixar o Avatar para trás era rude para alguém tão preocupado com boas maneiras, mas o dever chama.

 

Agora restavam ela e Boma em Nujian. Yangchen olhou seus arredores. Ela havia jogado seu capuz para trás, e a multidão respondeu à ação descobrindo suas cabeças também. Seus olhares com brilho. Vários deles estavam com as mãos fechadas à frente de seus corações num símbolo universal. Por favor.

 

Estou tentando, pensou.

 

Essa pode ser a única visão que tiveram dela em suas vidas. Ela gostaria de ter parado e conversado com alguns deles, como fez com os pais de Kavik na noite passada, mas ela realmente estava sem tempo hoje. A bênção pessoal do Avatar era muito buscada, mas na prática não era tão eficaz.

 

De qualquer maneira, Bin-Er precisava de mais do que um aceno e um sorriso.

 

Os shang haviam feito seu melhor para limpar as ruas para sua visita. A rota do desfile a levou pelos bairros prósperos, passando pelas casas de comércio e fontes congeladas, mostrou a arquitetura esculpida e pontiaguda de uma versão mais antiga da cidade que não tinha relevância há décadas.

 

Mas não foi o suficiente para enganar os olhos de uma Nômade do Ar, afiados por encarar através de picos de montanhas. Não passados nem cinco minutos de procissão, Yangchen observara um beco cheio de cobertores e colchões abandonados, seus donos provavelmente obrigados a desocupar o local ou sofrer as consequências.

 

Isso não se sustentava. Você não pode colocar todos os seus grãos em um lado da sela e esperar que fique em equilíbrio.

 

 — Talvez poderíamos nos apressar um pouquinho — disse Boma ao fundo, fazendo com que ela voltasse ao presente.

 

 — Preocupado com a paciência dos Shangs também?

 

 — Não. É a multidão. Estão próximos demais pro meu gosto. — Boma normalmente não era tão rude quando se tratava dos aglomerados de devotos. Como para concordar com ele, Nujian grunhiu e bufou, interrompendo a caminhada. Yangchen observou os arredores.

 

As linhas de frente fascinadas estavam um pouco mais a frente, mas não era um problema. Não se comparado às figuras atrás deles que mantiveram seus capuzes. Três homens tentando se manter no ritmo dela.

 

Tudo bem. Veio com o território. Ela havia vindo aqui porque as pessoas estavam infelizes; não seria justo ela se incomodar com a presença de pessoas infelizes.

 

Ela sabia que estava lidando com encrenqueiros, não assassinos. Ela havia visto esse exato incidente acontecer através dos olhos de seus antepassados e não estava preocupada. Surpreendê-la com um golpe seria difícil o suficiente. Enquanto o frio era algo fora de seu controle, ela era excelente sentindo e reagindo a correntes de ar.

 

A fruta podre que voou em direção a sua cabeça poderia muito bem ter se movido na velocidade de um caracol-preguiça. Yangchen formou um pequeno ciclone um rápido movimento de seu pulso e usou o funil de ar para guiar o míssil até sua mão.

 

Papaya, notou com certo divertimento. Eles devem ter vasculhado o lixo de uma residência rica o suficiente para impor–

 

 — Aagh!

 

O som de argila quebrando a fez virar a cabeça. Boma segurou o rosto enquanto sangue escorria pelos seus dedos. Os fragmentos de um jarro quebrado estavam caídos, espalhados pela sela.

 

Uma fúria vermelha correu pelas veias de Yangchen. Não poderiam atingi-la, então miraram num idoso. Seu amigo. Ergueu-se no pescoço de seu bisão:

 

 — Estou aqui para ajudar vocês! — Ela gritou.

 

Nujian reagiu a suas emoções e bateu com a base gigante de sua cauda no chão. Qualquer grito de medo foi soprado para longe.

 

Entre a meia lua de pessoas em estado de choque, Yangchen viu a pessoa que jogou o jarro. Não era uma criança malcriada. Era um homem da mesma idade de Boma, se não mais velho. Ela conseguia ler o medo e a amargura em seus olhos como um pergaminho. Que ajuda? Vocês aí em cima, e nós aqui embaixo, que ajuda?

 

Não importava que como uma Nômade do Ar ela tinha menos bens que qualquer um aqui. Ela tinha liberdade. Ela tinha prestígio — o maior prestígio, inclusive. Mais prestígio que qualquer outra pessoa no mundo.

 

Mas assim que ela seguisse o caminho de Sidao, virasse a esquina, e sumisse de vista, esses espectadores retornariam às suas vidas sem nenhuma melhora. A não ser que ela pudesse fazer algo por eles, mesmo os mais fiéis crentes do Avatar perceberiam que ela foi uma breve brisa num dia abrasado, agradável por um instante, mas, por fim, insignificante. Alguns ficariam tristes, outros com raiva. O homem que atingira Boma estava apenas mais à frente na jornada que a maioria.

 

Num momento de frustração, ela arremessou a fruta marrom que estava escorrendo em sua mão na parede, acima da cabeça dele. O alimento se despedaçou, jorrando sementes e polpa. Alguém gritou horrorizado.

 

Ela sabia que se arrependeria do ato no dia seguinte, se não em poucos minutos. Essas explosões de raiva furavam sua imagem e deixavam a verdadeira luz passar.

 

Yangchen sacudiu a cabeça e induziu Nujian a seguir adiante.

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Capítulo 9