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A Aurora de Yangchen: Negócios Legítimos

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Vista por cima, Ma’inka sempre lembrava Yangchen de uma cabeça de peixe. Boca aberta e olhos arregalados, divididos do resto do corpo. Ela se identificava.

 

Sendo uma das ilhas ocidentais da cadeia vulcânica que compõe a Nação do Fogo, Ma’inka pertencia ao clã Saowon. Uma linhagem antiga e orgulhosa que data dos tempos pré-unificação. Seu predecessor mais recente, o Avatar Szeto, havia gerido de forma habilidosa os Saowon e seus rivais de outros clãs nobres durante um momento crítico em sua terra natal, e atenuado feudos antigos, conquistando uma paz duradoura.

 

Yangchen pensou que havia atingido o patamar do legado de Szeto com uma vitória própria na última vez que esteve em Ma’inka. A mensagem que recebeu sobre a intercepção de Chaisee provou o contrário.

 

Ela circulou pelos pináculos esculpidos da mansão de pedra de Duque Zolian e desembarcou entre paredes cobertas de musgo e um espelho d’água que estava desenvolvendo uma cobertura verde. Sua recepção pelos servos foi sombria. A disseram que mesmo o duque tendo sido informado da chegada da Avatar no instante que avistaram seu bisão no céu, ele ainda estava finalizando alguns negócios com os anciãos do clã. Ela teria que esperar.

 

Por um breve momento, Yangchen perguntou a si mesma como gerações futuras encarariam uma Avatar nativa do Ar desafiando um nobre da Nação do Fogo para um Agni Kai. Ela ganharia também; estava bem certa disso.

 

Depois de se acalmar, Yangchen deixou Nujian sob cuidado do estábulo e foi guiada para dentro da sede ancestral dos Saowon. No escritório privado de Zolian, Yangchen sentava sozinha, bebia chá fumado, e engolia suas preocupações.

 

Havia arriscado largar tudo e vir até aqui ao invés de encontrar Kavik como prometido. Tentar contato no abrigo secreto antes de viajar para Ma’inka era sim uma opção. Mas a vantagem de Chaisee no pico de Jonduri, mais os observadores que ela arrumou para vigiar Yangchen depois de seu diálogo, significava que voltar cuidadosamente para a cidade seria um processo longo e trabalhoso. O tempo era essencial aqui. Ela deveria esperar que Kavik tivesse senso o suficiente para manter a calma com Akuudan e Tayagum até que ela retornasse a Jonduri.

 

A porta abriu e o Duque Zolian entrou. Ele emagreceu desde a última vez que se encontraram, e sua barba estava mais acinzentada. Atrás dele estava seu herdeiro e primo bem mais novo, Lohi, que segurava em seus braços uma grande caixa talhada.

 

Um presente. Ela iria receber um presente em compensação a tudo. Os dois homens se curvaram em reverência.

 

— Avatar — Zolian disse, sua voz desafinando em alívio. — Você recebeu nossa mensagem. Graças aos espíritos, você receb…

 

 — Cale a boca — Yangchen o cortou. Ela havia mostrado todo o tato do mundo em sua primeira visita, mas agora as circunstâncias eram outras. — Cale a boca. Cale a boca. Cale. A boca.

 

Seu comando ficou no vácuo. Até uma nova ordem. Eles esperaram obedientes, as cabeças penduradas. A vergonha deles era um testamento da gravidade dos erros e do quanto ainda precisavam dela.

 

Pode ter parecido que ela estava desenhando o momento para exercer seu poder, mas na verdade Yangchen não sabia o que dizer. Ela tropeçava em toda frase em sua cabeça.

 

— Vocês… vocês só tinham uma coisa para fazer — Yangchen disse, a eloquência desaparecida. — Estava dando certo. Estava dando certo e vocês… tudo que vocês precisavam fazer era manter a sua parte do acordo! Vocês só tinham uma coisa para fazer e estragaram tudo!

 

O controle sobre a intensidade de sua voz também havia desaparecido. Ela se perguntou por que eles não estavam falando, até que lembrou que ordenou isso.

 

— Avatar. — Lohi trocou de lado o peso da caixa que Yangchen ainda recusava a reconhecer. — Entendo que deva estar decepcionada, mas, por favor, nos deixe explicar.

 

— Explicar o quê?! Nenhum humano deveria ter pisado a uma distância de três li da beira da caverna! Não tínhamos instalado avisos de limites? Não tínhamos comunicado os termos para os chefes de família reunidos antes de eu ir embora? Não há o que explicar!

 

Isso deveria ter sido uma das questões mais objetivas para um Avatar. Uma de suas responsabilidades mais básicas. Uma vitória fácil, inclusive. Os Saowon haviam pedido sua ajuda para lidar com forças invisíveis causando problemas aos arredores de suas vilas. E ela ajudou.

 

Depois de interpretar a vontade dos espíritos, ela informou aos seus vizinhos humanos que, para acabar com os problemas, eles deveriam manter distância dos cenotes espalhadas pela ilha e não interferir no que parecia perfeitamente bom, terra arável intocada. Assentamentos foram recuados, a destruição das dolinas chegou ao fim e o equilíbrio se instalou em Ma’inka. Delicado, mas real.

 

Aqueles esforços haviam sido desperdiçados. O queixo do duque Zolian tremeu. Não importava que ele não conseguia falar; tantas respostas poderiam ser escolhidas. Não achamos que a regra servia para todos. Quebramos a regra acidentalmente e nada ruim aconteceu de imediato, então pensamos que estava tudo bem. Não achamos que você estava sendo sincera. Achamos que o problema havia sumido eventualmente por conta própria. Percebemos, em retrospecto, que simplesmente não nos importávamos com qualquer coisa que não fosse nossa própria vontade no momento.

 

Yangchen havia escutado inúmeras variações na melodia subjacente, mas tudo era a mesma música.

 

— Vocês limitaram minha habilidade de ajudá-los novamente. Deem-me um motivo pelo qual eu não deveria ir embora imediatamente e deixá-los lidar com os espíritos por conta própria dessa vez.

 

A ameaça a surpreendeu assim que falava. Ela não abandonaria pessoas necessitadas. Então por que falou aquilo? Por que a ideia de voar para longe, deixando-os para trás, apelando para os céus, era boa de imaginar?

 

Aqui, Zolian possuía uma resposta pronta:

 

— Nossas crianças — disse ele. — É como escrevemos para você. Os espíritos enguias-fênix… Eles fizeram algo com nossas crianças. Uma maldição. Ao longo da ilha, a juventude Saowon não está acordando de seu sono. Eles irão sucumbir se não agirmos.

 

— Todos os curandeiros que consultamos dizem que essa doença surge na alma, não no corpo — disse Lohi. — Sei que você pode não acreditar em nós, mas poderíamos levá-la a um hospital, mostrar a situação…

 

— NÃO!

 

Eles ficaram confusos com a recusa violenta. A Avatar Yangchen era conhecida por curar os doentes com suas próprias mãos; era provavelmente a imagem dela que as Quatro Nações mais gostavam. Era verdade que ela havia tratado diversas feridas e doenças terríveis, visto o pior tipo de dano físico.

 

Mas ver o desgaste de um sonho, a forma pacífica de um corpo danificado em espírito… não. Ela não conseguiria sujeitar-se a fazer isso, não depois do que aconteceu com Jetsun.

 

— Acredito em vocês — Yangchen disse. — Não há o que provar.

 

Zolian ajoelhou e encostou sua cabeça no chão:

 

— Eu imploro que você não permita que eles sofram por nossos delitos. Por favor, Avatar. Negocie com os espíritos por nós mais uma vez. Vamos honrar o desfecho, honrar você, por uma eternidade.

 

Lohi se aproximou com a caixa.

 

— Colecionamos penitências do nosso clã para mostrar nossa sinceridade.

 

Ele removeu a tampa e mostrou o conteúdo.

 

Quando Yangchen percebeu o que eram os pedaços pretos de dentro, ela teve que desviar os olhos. Amontoados na caixa, como os órgãos de um animal morto, estavam trouxas de cabelo humano. Julgando pelos broches com joias e coloração dourada intencionalmente deixados nelas, os membros mais importantes do clã Saowon haviam feito o ritual de desonra.

 

O significado, o peso daquela colheita, subiu pelo pescoço de Yangchen, a deixando atordoada e enjoada. Eles queriam mexer com ela. Eles não poderiam ter imaginado o quanto daria certo.

 

Ela havia sido da Nação do Fogo incontáveis vezes, mantido sua honra em máxima estima, e a perdeu em algumas ocasiões. O fato se aplicava aqui tanto quanto foi aplicado por baixo do assoalho do salão de reuniões de Bin-Er.

 

Yangchen cambaleou para trás e encontrou apoio em sua cadeira.

 

— Tire isso de perto de mim — disse ela. — Coloque a tampa de volta.

 

Com tudo pesando em cima dela, ela não poderia permitir que perdesse o controle na frente dos líderes de um forte clã da Nação do Fogo. Ela lutou contra o desconforto em seu estômago. Engoliu e engoliu até que o perigo passasse.

 

O ato de força de vontade não era um momento de causar orgulho. Supressão bruta tinha um custo. Sua mente e seu corpo certamente iriam pagar o preço futuramente, com interesse.

 

Zolian e Lohi entenderam seu estremecimento como uma aceitação do gesto. É claro que a bondosa e querida Nômade do Ar ficaria mexida.

 

— Restam apenas dois adendos a serem feitos — disse Lohi. Ele deixou a caixa de lado, desembainhou uma lâmina e ajoelhou ao lado de seu primo mais velho.

 


 

Yangchen e Lohi deixaram Zolian se recuperando em uma cadeira com ajuda de seus servos, uma toalha úmida cobria seus olhos. A demonstração de vergonha funcionou, a Avatar concordou, mas o estresse mental de perder seu coque deixou o duque incapaz de demais discussões.

 

O Saowon mais novo precisou de apenas um minuto para se recompor antes de se oferecer para acompanhar Yangchen até a saída. Eles andaram por um corredor exposto de um lado a um pátio aberto, manchas de líquidos escorriam pelos espaços da cantaria acima. A mansão possuía uma construção semelhante à de um templo, seu antigo arquiteto sem dúvida foi influenciado pela forte ligação entre o clã Saowon e os Sábios do Fogo.

 

A mão de Lohi se ergueu apenas uma vez em direção ao cabelo cortado — para conferir incrédulo se seu cabelo ainda não estava em sua cabeça — antes de ser abaixada e mantida com seu punho fechado.

 

— Meu clã me fez implorar por seu perdão — ele disse. — Precisávamos do máximo de terreno em que poderíamos plantar. Em tempos escassos, todo acre importa.

 

Lohi havia mostrado ser sensível na última vez que Yangchen esteve em Ma’inka, uma pessoa com a qual ela pudesse trabalhar. Ele certamente reconhecia o quanto as desculpas que saíam de sua boca soavam fracas.

 

— Nós tentamos outras medidas antes de contatá-la novamente. — Lohi gesticulou para uma alcova vazia enquanto passavam. — Os tesouros da família. Alguns deles foram sacrificados em piras até ficarem indisponíveis; o resto teve de ser liquidado para sustentar nossos retentores. Os momentos estão difíceis, Avatar.

 

— Eles não precisariam estar.

 

Essa era a parte mais frustrante. Nem Yangchen nem os espíritos haviam pedido miséria total para os Saowon.

 

— De fato. Seu aviso inicial foi dado de forma impecável. Nossos ouvidos teimosos que recusaram ouvir.

 

Yangchen se lembrou do conselho original com os líderes das famílias, no qual explicou as demandas dos espíritos. Os anciãos, ao invés de concordar, demonstraram incerteza, e quando Zolian anunciou que obedeceriam, vários pares de olhos se entreolharam ao invés de olhar para o líder de seu clã.

 

— Meu duque foi incapaz de impedir que algumas casas quebrassem o contrato — disse Lohi. — Ele é um homem bom, mas de vez em quando é atenuado quando se trata de sua família. Quando for minha vez de liderar os Saowon, lhe prometo que irei impor unanimidade dentro do clã.

 

Uma mera coincidência em sua escolha de palavras. E ainda assim Yangchen se esforçou para não gritar.

 

Um servo trouxe seu bastão. Ela teria que voar rápido.

 

— Diga-me uma coisa — ela disse assim que ficou sozinha com Lohi novamente. — Os líderes das famílias que quebraram o acordo. Eles teriam me ouvido da primeira vez se eu tivesse dito que o tratado era uma ideia do próprio Avatar Szeto, e não minha? Se eu tivesse dito que conversei com seu espírito antes da reunião, e que as regras eram simplesmente o que ele me mandou colocar no papel?

 

Ela pensou nessa tática depois da falha em Bin-Er, tarde demais para ajudá-la naquele momento e muito depois de sua primeira tentativa de ajudar os Saowon. Conversar com a voz de sua vida passada, o ancião, o respeitado homem de estado, poderia tê-la ajudado na causa à frente de Teiin e Noehi. Com certeza não teria machucado.

 

Mas na Nação do Fogo, o nome de Szeto era uma marreta. Tendo ela o mencionado, seu decreto para manter distância dos cenotes sagrados teria tido para os Saowon o peso de uma mãe, um pai, um sifu, do Senhor do Fogo, todos juntos. Ela poderia ter alavancado a credibilidade de seu predecessor, desde que estivesse disposta a reconhecer que não tinha uma por si só.

 

A pausa de Lohi foi a resposta que precisava:

 

— …Você o fez? — Ele perguntou. — Você conversou com Szeto?

 

Yangchen franziu a testa, abriu as asas de seu planador e partiu.

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Capítulo 22