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O Legado de Yangchen: Mitigação

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As explosões haviam parado há um bom tempo. Kavik aguardava no hospital com os outros. Ele sabia que a Avatar iria direto para lá prover seus poderes de cura. Se ela ainda estivesse viva.

 

Os feridos iam entrando um por um. Ele se forçou a olhar. Pessoas machucadas, sobretudo jovens e velhos, ou pessoas no lado menor. Os aldeões que teriam sido pisoteados mais facilmente. Felizmente ainda não havia nenhum morto, ao menos não além de Henshe. Os dominadores de ar que foram derrubados ao lado de fora de seu quarto estavam acordados e descansando no canto. Eles disseram, grogues, que não avistaram nada antes de serem derrubados por um impacto na cabeça.

 

O zongdu assassinado com certeza seria um… diálogo. Kavik atritava seu pé contra o chão. Tayagum e Akuudan ainda estavam ajudando com a limpeza, o que deixou Jujinta olhando por cima de seu pescoço, vigilante. A última ordem da Avatar para ficar de guarda não possuía mais um alvo agora que Henshe estava morto, e parecia que Jujinta necessitava de uma ocupação. Agora Kavik era o prisioneiro.

 

Ele queria explicar que não tinha nada a ver com o assassinato. Mas quaisquer desculpas fracassariam. Não era preciso voltar tanto ao passado para achar a mão de Kavik moldando parte desse desastre.

 

As portas laterais do hospital, grandes o suficiente para permitir a passagem de uma carroça, abriram num estrondo. Yangchen entrou arrastando os pés. Sobre seus ombros havia um monge maior. Ela ultrapassou a fila de pessoas aguardando para serem curadas e deitou o homem numa maca, com muita cautela.

 

— Corda — disse a Jujinta enquanto removia a parte superior das vestes do seu paciente.

 

Para Kavik, ela chiou:

 

— Água, como da última vez. Agora.

 

Ela estava em seu estado elevado, seu foco preciso como a beira de uma lasca de vidro. Jujinta empurrou a aglomeração decepcionada para criar mais espaço. Kavik encontrou água limpa o suficiente em vários baldes de espera e cercou o corpo do dominador de ar com o líquido, levantando-o para que Yangchen pudesse analisar os danos. Ele se manteve calado, com receio de que qualquer respiro desnecessário fosse escalar a situação de maneira errada.

 

— Os pulmões dele foram rompidos por uma onda de choque — ela disse ao se mover para o outro lado da maca. — Eles colapsaram como odres vazios dentro de seu peito. Mantenha-o elevado e firme. Não se mexa.

 

Kavik assentiu. Ele esperou Yangchen pegar um pouco da água e usá-la com suas habilidades de cura. Eles já trabalharam em dupla dessa forma antes, ele aplicando os movimentos de sustentação e ela a técnica e manipulações precisas. Surgiria uma gentil luz azul e, por baixo, um sentimento compartilhado de vida na cicatrização, um fluxo mais forte do que qualquer um que Kavik havia experimentado.

 

Em vez disso, Yangchen perfurou o homem.

 

Com um movimento curto e certeiro dos punhos dela, duas pontas agudas de água foram fincadas em seu peito. Kavik ganiu e quase derrubou o paciente. Foi como se a Avatar tivesse colocado os dedos dele em volta de uma faca e guiado a lâmina até o alvo que ela queria assassinar. Ela certificou-se de que ambos seriam julgados pelo crime.

 

Respingos de sangue e bolhas de ar saíam das pequenas perfurações, que podiam ser vistos por cima através da camada de água que Kavik se esforçava para manter. Yangchen abriu seus braços e expandiu o casulo, e depois o contraiu. Um suspiro ofegante saiu do monge ainda inconsciente.

 

Kavik pôde sentir o homem voltando a respirar, fraco mas constante. Yangchen circulou suas mãos e dois pontinhos como vagalumes-do-templo dançaram por cima das pequenas incisões, fechando-as. O brilho familiar se espalhava a partir dali e a Avatar, ainda não totalmente relaxada, parecia poder ver e ouvir novamente além de um túnel estreito.

 

A fase mais perigosa acabou. A espetacular façanha já foi executada. O que restava era trabalho. Sem precisar de ordens, Kavik manteve o paciente envolvido enquanto Yangchen aplicava o conhecido brilho à água e movia as mãos conforme os caminhos de energia do corpo do dominador de ar.

 

Kavik tentou lembrar se havia conhecido o homem durante sua primeira visita, mas seu esforço soou oco. Isso seria ruim da mesma forma se ele fosse um completo desconhecido. Uma vez Yangchen disse a ele que uma pessoa não era mais valiosa simplesmente por você a conhecer por nome.

 

— Quando finalizarmos, preciso dar a você um resumo — ele disse assim que ela parecia poder poupar um pouco de concentração.

 

Os olhos dela focavam mais nas mãos, mas ela era capaz de olhar para Kavik periodicamente.

 

— Diga-me agora. Ficaremos aqui por um tempo. É sobre nosso convidado na ala de visitantes?

 

Ninguém estava perto o suficiente para ouví-los, mas ainda assim.

 

— Não sei se este é o melhor momento para entrar nos detalhes.

 

— Falei para me dizer agora.

 

Kavik estremeceu. Não era como se ela estivesse segurando um travesseiro para bater ou arremessar caso ficasse perturbada e perdesse temporariamente o controle. Ela estava com um ser humano embalado em suas mãos. Mingyur. O nome rapidamente foi lembrado. Mingyur havia guiado a bênção na mesa de Kavik antes de comerem seu simples jantar de cevada torrada e chá de manteiga.

 

Por cima do nó em seu estômago, ele contou a ela a história toda até os ossos. Durante o caos do deslizamento de rochas, Henshe havia sido eliminado, provavelmente pelo irmão de Kavik, Kalyaan. Kalyaan havia subornado um grupo de aldeões para servir de distração e escapado pela janela que dava para o lado da montanha. Ele era um escalador e dominador de água qualificado o suficiente para conseguir a fuga ousada. Um testemunho honesto de alguém que o conhecia muito bem.

 

Yangchen ficou em silêncio por um tempo. Kavik manteve-se atento à água para certificar-se de que ela não espremeria por acidente o restante da vida para fora do corpo do paciente, mas seus medos eram sem fundamento. A Avatar se manteve totalmente calma.

 

— Parece que eu devia ter recrutado ele ao invés de você.

 

Kavik engoliu o caroço em seu pescoço. Pelo canto de seu olho, viu dois times de maqueiros tentando chegar ao fundo do hospital sem chamar atenção, onde ele sabia que era o mortuário. Os corpos que carregavam eram muito largos para eles, e tiveram dificuldade com os longos membros estendidos para fora das mortalhas.

 

Um dos tecidos enroscou, e antes que um atendente pudesse substituí-lo, Kavik viu claramente o rosto frio, morto, de Xiaoyun. Na outra maca, tranças desfeitas se arrastavam no chão. Yingsu.

 

Dois membros da Unanimidade estavam mortos. O terceiro passou despercebido. Quaisquer planos que Avatar ou a Lótus Branco tinham para os dominadores de fogo estavam em desordem completa.

 

Um burburinho aumentava no hospital. Ele perdeu sua origem, mas várias pessoas estavam tentando passar por cima de Jujinta, e um deles, um homem de bigode tão escuro e lustroso que parecia estar colado, conseguiu passar. Kavik supôs que ele estava impaciente por atenção médica. A sorte dele era que Jujinta seguia outras regras em público, se não ele teria que endireitar sua coluna junto com qualquer outro machucado que precisasse ser tratado.

 

— Ei, amigão! — Kavik cutucou inutilmente o fura-fila com seu pé. Seus braços estavam ocupados mantendo a água flutuando. — Aguarde sua vez!

 

— Não estou ferido; sou o capitão da vila. — O homem alisou seu bigode com o dedão e o indicador enquanto falava. — Preciso saber o que aconteceu com os presentes do Chefe da tribo do Norte.

 

Kavik precisou balançar sua cabeça algumas vezes até que essas palavras se arranjassem de forma compreensível. Os tesouros que o Chefe Oyaluk havia garantido à Avatar. Os bens que tinha arrumado.

 

— Por que?

 

— Precisávamos daquelas esmolas para financiar a expansão da vila. Era para ser uma sela cheia de itens valiosos e em vez disso ganhamos um tapete enrugado e um monte de equipamentos para acampar!

 

— Precisei cortá-los — disse Yangchen.

 

Kavik virou a cabeça para olhar para Yangchen atrás dele. Os olhos dela permaneceram em Mingyur, suas mãos em seu pulso. Ela continuou dando tapinhas em seu quadril.

 

— Você fez o quê? — O capitão tentou se aproximar mais dela, mas Kavik se movia para frente e para trás, ficando entre os dois. — Onde? Onde você enfiou a carga? Não me diga que jogou nas montanhas!

 

Yangchen não respondeu. Tap. Tap. Tap.

 

O homem abriu suas mandíbulas e alisou seus pelos do rosto com as duas mãos. Ele deveria estar em grande estresse.

 

— Avatar, precisamos que você ache aqueles presentes. Se não você, os outros dominadores de ar.

 

 

— Você está brincando comigo?! — Kavik cuspiu. Seus braços estavam começando a doer por segurar a água. — Vá procurar aquelas coisas você mesmo!

 

— Avatar. — O homem era menor que Kavik e pulava na ponta dos pés, tentando chamar atenção de Yangchen por cima do pescoço de Kavik. Ele não ia conversar com um lacaio se a pessoa obrigada a ajudá-lo estava bem ali. — Avatar. Avatar! É melhor você ter um plano para consertar isso–

 

Yangchen cerrou seu punho. Foi todo o movimento que ela precisava. Uma invisível mão de vento carregou o capitão da vila para fora das portas laterais do hospital e o mandou gritando para o céu.

 

— Perdi a conta — ela murmurou sem olhar para cima.

 


 

Kavik não tinha tempo para ficar em choque. Yangchen havia o jogado pro ar em várias ocasiões, para infiltrar e retirar ele de situações complicadas. Ou só quando ela simplesmente estava afim de pegadinhas.

 

Mas não importa o quão desprevenido ele estivesse, ele sempre sabia que ela tinha sua segurança em mente, um amortecimento adequado preparado. Não era o caso com o capitão da vila. O homem teria uma aterrissagem forçada se Kavik não reagisse a tempo.

 

Ele saiu correndo pela lateral do hospital, levando a água que seria para Mingyur com ele. Rápido rápido rápido. Ayunerak havia o treinado para captar seus arredores em um instante, mas com a paisagem restrita ao porão de um esconderijo, eles recorreram a objetos caseiros em mesas, cobertos por um lençol. Sem espiar no sistema de honras.

 

A lateral da montanha próxima ao hospital havia mudado desde a última vez que esteve lá. Cabana em ruínas. Tijolos soltos. Pilha de lixo. Pilha de lixo.

 

Kavik controlou seu elemento como a vela de um navio e empurrou o monte de lixo para baixo do homem caindo, bem a tempo de amortecer o impacto. Seu controle pela água explodiu, encharcando o pobre homem. O cheiro era terrível.

 

Ele correu para a pilha achatada de miolos de fruta escurecendo, canudos de cevada, cinzas de lareira descartadas. O homem teve dificuldade para se endireitar como um caranguejo-tartaruga. Ele estava atordoado mas não ferido.

 

— O que– Ela me–

 

Kavik pensou em deixar a verdade ser absorvida. Talvez o capitão da vila teria um novo esclarecimento e aprendesse a andar sobre a corda bamba, tendo uma abordagem mais cuidadosa, possivelmente mais correta, na relação com sua Avatar no futuro.

 

Ou talvez ele só enlouqueceria. Conhecendo seres humanos, a probabilidade era maior em um dos caminhos.

 

— Falei para você esperar sua vez — Kavik rosnou. Ele torceu o rosto na expressão mais intimidadora que poderia fazer. — Na próxima vez você degusta o chão.

 

O capitão da vila piscou enquanto somava dois mais dois. Ele estava encharcado e um dominador de água furioso estava diante dele.

 

— Ela irá ouvir sobre isso — ele murmurou. Ele limpou seus lábios com a parte traseira do antebraço, embravecido. — Guarde minhas palavras, ela irá ouvir sobre isso!

 

O homem desceu correndo pela lateral da montanha, cuspindo palavras o caminho todo. Kavik observou sua saída, se perguntando se ele realmente havia salvado Yangchen de qualquer problema futuro.

 


 

A Avatar e seu time se encontraram numa câmara do Templo do Ar dedicada a cerimônias à luz de velas. Em volta deles, bancos de pequenas tigelas de barro, não mais largas que moedas, jaziam cheias de gordura e mechas de algodão. Kavik sabia pelo passeio que os novatos às vezes treinavam em cômodos como aquele, controlando correntes de ar sobre os extremos de chamas individuais, ameaçando direcioná-las para um lado e depois para outro sem extingui-las, como desenhar padrões friccionando os dedos em tecido. Mestres célebres do passado podiam passar horas ali sem permitir que alguma das luzes tremeluzisse um pouco, seu controle sobre o ar tão completo que acalmavam redemoinhos e espirais de brisas naturais até que as chamas congelassem no lugar.

 

Na opinião de Kavik, o cômodo octogonal passava a sensação de um lugar sagrado que deveria ser proibido para não iniciados. Mas pelo jeito ainda não haviam achado os limites da tolerância dos dominadores de ar. Ele, Jujinta, Tayagum e Akuudan, todos intrusos, aglomeravam o centro do piso enquanto Yangchen ficava mais afastada. Ela havia completado sua investigação e estava pronta para interrogar seu time.

 

A reunião incontestavelmente não era como nos velhos tempos. Até mesmo antes da verdade sobre a traição de Kavik chegar aos outros, suas discussões em Bin-Er haviam sido limitadas a rajadas frenéticas sobre estratégia da melhor forma que conseguiam sob uma chuva de fogo. Não haviam momentos calmos para relembrar.

 

Agora o silêncio estava muito pesado, um cobertor no verão.

 

— Mingyur sobreviverá? — Kavik perguntou. A Avatar não teria deixado seu lado se houvesse mais o que fazer. Ou ele estava no caminho para se recuperar, ou estava…

 

— Ele irá se recuperar — disse Yangchen. — Só não sei se será capaz de ouvir novamente.

 

Ela estava exercendo grande controle. As chamas das velas acesas estavam altas e consistentes como garras. Tayagum foi o próximo.

 

— A população da vila está questionando as explosões?

 

— Por sorte, não. Se questionarem, podemos facilmente dizer que os barulhos eram de cascatas e deslizamentos. As montanhas comumente originam barulhos estranhos. Sim, Juji?

 

Jujinta tinha sua mão levantada, braço totalmente esticado, cotovelo travado. Abaixou quando lhe deram a palavra.

 

— Ele deveria estar aqui para isso? — Apontou para Kavik.

 

— Acredito que sim. — Sua resposta lenta, deliberada daria a impressão de que estava arrastando o nariz de Kavik nos resultados contínuos de suas decisões ruins, e não usando a oportunidade para alinhar informação com a Lótus Branco.

 

— Há cerca de seis semanas, Thapa, após desenvolver um relacionamento com seus guardas, convenceu um deles a levar uma mensagem escrita para sua mãe para garantir a ela que estava bem, — Yangchen falou. — Malditos sejam os bons corações do meu povo, não é? Todos os nossos esforços desfeitos por uma mensagem à família.

 

Por que não ambos, Kavik pensou infeliz.

 

— Antes de concordarem, o guarda leu a carta e não encontrou nada que revelaria a localização de Thapa, e deixou-a num posto de mensagens em Jang Hui para o eventual transporte, — Yangchen continuou. — Mas com base em suas memórias do conteúdo, acredito que continha instruções codificadas para Chaise salvá-lo. Não acredito que a verdadeira mãe de Thapa, seja lá quem for, teria os recursos para inspecionar as montanhas, preparar uma rede abaixo de sua cabana à beira do penhasco e coordenar seu pulo numa queda livre durante uma troca de guardas. Achei o cordame de deixaram para trás. Trabalho de qualidade.

 

Kavik sabia exatamente quem teria sido capaz de realizar uma operação tão complexa sob o comando de Chaisee, mas se manteve calado.

 

— O que aconteceu com os guardas de Thapa? — Perguntou Akuudan.

 

— Ele pegou leve com eles. — A amargura de Yangchen era forte, considerando que misericórdia era uma qualidade contemplada pelos dominadores de ar. — Ele explodiu apenas montanha o suficiente para atordoá-los e cobrir seus rastros. As primeiras explosões. Tenho menos certeza sobre o que aconteceu depois daquilo, mas minha teoria é que seus socorristas também vigiaram as localizações dos outros dominadores de fogo. Thapa traiu todos e matou o resto da Unanimidade.

 

— Espera, — disse Akuudan. — Xiaoyun e Yingsu–

 

— Estão mortos. Thapa conseguiu pegar Xiaoyun primeiro, de surpresa, e depois Yingsu… Nós três levamos uma série de ataques fortes. Escolhi salvar Mingyur ao invés dela.

 

As velas piscaram pela primeira vez. Kavik viu arrependimento no rosto da Avatar. Culpa por sentir arrependimento. A única pessoa que provavelmente culparia Yangchen por preservar a vida de seu irmão nômade do ar no lugar de uma pessoa estrategicamente importante era ela mesma.

 

— Por algum milagre nenhum guarda de Yingsu ou Xiaoyun foi ferido no nível de Mingyur, — disse ela. — Mas não pude impedir a fuga de Thapa. Os times de busca estão chegando de mãos vazias e nossas chances de achá-lo antes que saia de Taihua não são boas.

 

— Não entendo por que Chaisee gostaria de se livrar de dois dos seus maiores recursos, — disse Tayagum.

 

— Ela provavelmente não queria, — Yangchen disse. — Acredito que Thapa tenha surtado por um momento. Ele eliminou os outros dominadores de fogo para tornar-se o único prêmio desse jogo. Ele era valioso antes, mas agora é inestimável. — Ela engoliu em seco. — Suponho que ele tenha nos feito um favor.

 

— Matar seus companheiros para conseguir um aumento, — Kavik murmurou. — Nem em Bin-Er.

 

— Chaisee é inteligente, mas ninguém pode prever tudo — falou Yangchen, quase com um nível de simpatia pela zongdu. — Diga a todos o que você me contou sobre seu irmão.

 

O resto do time até que aceitou bem a teoria de Kavik. Eles já o odiavam mesmo; não precisavam mostrar pela segunda vez o quanto. Verdadeiros profissionais, todos.

 

— Por que ele mataria Henshe se eles costumavam ser amigos em Bin-Er? — Perguntou Tayagum. — Traição corre no sangue da sua família?

 

— Porque ajuda Chaisee — disse Kavik. — Henshe poderia ter testemunhado sobre seus planos para o Rei da Terra ou outro governante. Meu irmão escolheu sua segunda chefe em vez do primeiro.

 

— Não basta nossa inimiga estar um passo à nossa frente, seus subordinados também estão. — Yangchen cobriu seus olhos de uma dureza desconhecida. — Somos o último vagão num trem movido por cavalo-avestruz, rolando pelos excrementos.

 

A Avatar realmente tinha jeito com as palavras.

 

— Qual o nosso próximo passo? — Kavik perguntou.

 

— Yingsu me deu um pouco de informação antes de Thapa acabar com ela — disse Yangchen. — Chaisee estava guardando a Unanimidade para Taku, não Bin-Er, e iria liberar o ataque durante a convocação com o Rei da Terra, Senhor do Fogo e Chefe da Tribo da Água. Com Thapa liberto, seu plano possivelmente está de volta. Ela só precisa de um dominador de fogo para danificar o mundo permanentemente.

 

Yangchen olhou para seu time.

 

— Precisamos ir a Taku e remover Thapa do tabuleiro. Vocês quatro conhecem a aparência dele e são os únicos em que posso confiar nessa questão. Sim, Juji, o Kavik também; precisamos de todos os nossos recursos. Pode abaixar seu braço.

 

Jujinta fez como mandado, mas ainda tinha outras dúvidas.

 

— Taku é bem maior que Bin-Er. E, para começo de conversa, só fomos capazes de encontrar qualquer um dos dominadores de fogo porque — seus lábios estremeceram, estava muito relutante para dar a Kavik qualquer espécie de elogio — essa pessoa aqui nos deu um ponto de partida vantajoso. Não poderíamos conversar com os dominadores de ar que vigiaram Thapa?

 

— Não acho que possamos contar com apoio do Templo do Norte. — Yangchen soou como se fosse elaborar mais, mas não o fez.

 

Akuudan suspirou. Seu peito continha ar suficiente para apagar uma pequena seção de velas.

 

— Estou muito velho para trabalhar na linha de frente — resmungou.

 

— Ah, querido. — Tayagum encostou o ombro no de seu marido. — Será como quando nos conhecemos no trabalho, antes do Acordo Platina e da passagem pela prisão.

 

— Vocês dois eram contramestres — disse Kavik. — Gerentes de suprimentos. — Mesmo achando no passado que Tayagum e Akuudan eram lutadores, ele descobriu que eles geriam para evitar trabalho dolorido, e então revisou sua opinião. — A batalha mais dura que vocês enfrentaram foi provavelmente servir sopa.

 

Os dois deram de ombros, como se ele tivesse a medida deles.

 

— Posso ficar com o cômodo? — Yangchen perguntou. — Kavik, por favor, fique aqui um pouco.

 

O excesso de polidez no tom dela fez parecer aos outros que ela realmente ia pegar pesado com ele em particular, para garantir que ele soubesse o destino horrível que seria dele caso tentasse ultrapassá-los de novo. Tayagum e Akuudan deixaram a câmara sem reclamar. O olhar de Jujinta variava entre Kavik e a Avatar, com a mesma expressão indiferente de sempre.

 

— Ele não é uma ameaça — Yangchen assegurou a ele.

 

— Ela seria capaz de me destroçar mesmo com as mãos amarradas nas costas — disse Kavik. Ele não estava sendo sarcástico.

 

Foram necessários os dois testemunhos para que Jujinta se retirasse. Yangchen esperou um pouco antes de falar.

 

— Aquilo foi o suficiente? — Ela perguntou.

 

— Suficiente o quê?

 

— Para seu informe à Lótus Branco. — Ela começou a andar circularmente em volta dele, com seus olhos fitando o chão. — Você precisa contar a eles tudo que você observa, não é? Você é o intermediário. O mensageiro.

 

As chamas das velas se inclinaram quando ela passou, curvando-se a ela.

 

— Você pode relatar à Ayunerak a magnitude absoluta do meu fracasso. Como ela está certa – sou uma criança incompetente à qual não se deve confiar assuntos mundiais.

 

Ele pensou em negar a alegação, mas seria inútil. Baseado no desastre que foi a reunião em Agna Qel’a, ela já sabia demais sobre a perspectiva da Lótus Branco.

 

A voz de Yangchen estava grave, como se estivesse prestando conta a um magistrado.

 

— Quer dizer, perdi Henshe, uma testemunha valiosa. Permiti que duas das pessoas mais valiosas do mundo morressem pelas mãos da terceira. Arrisquei a vila e mais vidas do Templo do Ar. — Seus passos medidos e lentos marcavam todos os itens da lista.

 

Ela queria que ele fosse um eco no canhão, para jogar de volta seus erros na sua cara. Ele não ia satisfazê-la.

 

— Ayunerak tem seu próprio trabalho para classificar antes que ela comece o seu — disse Kavik. — Quanto a mim, minha opinião aqui não vale o que eu teria que respirar para dá-la.

 

Yangchen franziu a testa.

 

— Isso não é a mesma coisa que não ter uma opinião.

 

— Eu sei. Posso manter minha boca calada e ainda fazer meu trabalho. Lembra que isso também é parte do meu acordo com a Lótus Branco? Ajudar você?

 

Seus lábios suavizaram e depois franziram como sempre faziam quando ela estava genuinamente surpresa. Kavik podia ter sido convencido de que, por um momento, ela esqueceu que o odiava.

 

As velas piscaram por uma presença adicional. Ele se virou, esperando ver Jujinta à espreita. Em vez disso era o Abade Sonam, o monge ancião que guiava o Templo do Norte.

 

Sonam curvou a cabeça, tufos de cabelo branco formavam um círculo na base.

 

— Mestre Kavik, — ele disse como se estivesse na presença de um convidado de honra. — Obrigado novamente por sua ajuda no hospital. Você leva jeito para curar.

 

— Não sei realmente como curar — Kavik disse. Ele ainda precisava de treinamento formal na arte.

 

— Às vezes a melhor medicina é prover a assistência correta na hora correta. — Disse Sonam. — Mingyur está acordado e bem.

 

Deveríamos vê-lo — disse Yangchen.

 

Sonam ergueu seus dedos.

 

— Não há necessidade. Avatar, tenho uma pergunta a você. Trata de grande urgência.

 

Kavik achou o comportamento do abade um tanto abrupto. Mas Yangchen parecia saber do que o idoso estava falando.

 

— Ele pode ficar — disse ela, de repente cansada e resignada. — A tradição dita uma testemunha.

 

Sonam assentiu solenemente.

 

— Irmã Yangchen. A comunidade do Templo do Ar do Norte necessita desesperadamente de uma bênção que apenas você pode prover. Depois da sua próxima saída desses solos sagrados, nossa existência depende do seu retorno com tesouros de grande importância.

 

— Oh ancião! — Yangchen disse. — Me devoto completamente a essa causa. O que devo recuperar dos quatro cantos do mundo?

 

— Um lírio-panda azul — disse Sonam. — A sombra de uma brisa. Os tendões de um espírito. E, mais importante de tudo, a posse material que irá preencher o vazio que jaz em todo ser humano.

 

A cabeça de Kavik começou a balançar. Isso não poderia significar o que ele estava pensando.

 

— Quando me vir de novo, verá essas jóias — Yangchen disse, hesitando sobre seu voto. — Então eu juro.

 

— Obrigado, irmã Yangchen. — O abade curvou-se profundamente, as pontas das setas nas suas mãos se encostavam em sua cintura. — Carregue sempre o amor de seu povo com você.

 

Sonam se levantou, limpou as lágrimas de seus olhos e se retirou sem nenhuma outra palavra.

 

Kavik não esperou o abade se afastar mais porque não se importava com quem ouvisse.

 

— Não — disse ele. — Não, não, não!

 

— Você adivinhou? — Perguntou Yangchen. Ela havia tropeçado um pouco com o golpe ali, mas só um pouco. Estava tão calma quanto poderia.

 

Kavik não precisava de uma explicação do ritual. Era uma demonstração de que dominadores de ar eram passivos até na formulação de suas punições, com a menor quantidade de violência sendo verbalizada. A tarefa que Sonam deu a ela era poética e impossível, e só poderia significar uma coisa: Yangchen foi exilada do Templo do Ar do Norte.

 

— Isso é besteira! — Gritou Kavik. — Você é a Avatar. Contra-ordene ele!

 

Yangchen gesticulou para ele abaixar a voz.

 

— Sou uma Nômade do Ar. Um membro do meu povo. O abade é responsável pela segurança dessa comunidade e não irei desrespeitar minhas próprias tradições minando sua autoridade. — Ela passou a língua sobre os dentes. — Aliás, está se estressando por nada.

 

Perder a conexão com a sua casa não era “nada”. Ele disse a ela.

 

— Relaxe — falou ela. — Se está preocupado com o vilarejo, ainda posso cuidar dos moradores à distância.

 

Ela estava quase convencida sobre o rumo dos acontecimentos. Finalmente, o castigo que estava esperando.

 

— O que há de errado com você? — Perguntou Kavik. — Por que está agindo dessa forma?

 

— Porque não importa. Posso colocar minha cabeça em outros templos. Por favor, acalme-se.

 

— O pôr do sol visto da torre. O lugar favorito da sua irmã—

 

EU DISSE QUE NÃO IMPORTA!

 

Seu grito extinguiu as chamas das velas. A luz desapareceu, substituída por fumaça. Os traços de Yangchen foram apagados na escuridão, e as lâmpadas do corredor afora projetavam sua sombra pesada no enquadro da entrada. Era como se ela já tivesse uma alcova para si.

 

Nenhum artista que a amasse a retrataria dessa forma.

 

— Eu preciso ser responsabilizada — disse ela, soando como o vazio. — Se não posso ser uma dominadora de ar no que diz respeito às minhas ações, posso ao menos ser uma dominadora de ar ao encarar as consequências.

 

Não havia nada que ele podia dizer.

 

— Vá descansar — ela ordenou. — Temos muito trabalho pela frente.

 


 

Quatro dias se passaram desde a fuga de Thapa e o assassinato do zongdu Henshe.

 

Kavik ainda não havia visto Yangchen uma única vez durante esse tempo. Ele vadiou com os outros na casa de chá e esperou. Ocasionalmente, Akuudan ou Tayagum falavam, sem solicitação, que ela provavelmente estava fazendo mais preparações. Ela estava bem. Tudo estava bem.

 

Na noite do quinto dia, Kavik aguardou até que os outros estivessem dormindo e saiu pelos fundos da casa de chá. Desde que Jujinta havia se recusado a abaixar a guarda antes de Kavik ficar inconsciente, ele precisava de um truque. Vários.

 

Ele sabia como roncava porque Kalyaan zombava dele com bastante frequência, fazendo uma imitação perfeita de acordo com seus pais. Forçando ar para dentro do nariz, manteve seus olhos fechados e bufou convincentemente até que Jujinta cedeu e buscou sua própria cama na casa de chá.

 

Assim que era a última pessoa acordada, ele saiu de baixo dos cobertores e congelou água na forma de um esqueleto no lugar de onde saiu, fazendo parecer que ainda estava lá. Após uma pequena camada de gelo para formar uma ponte pelo chão barulhento de tábuas de madeira, ele estava do lado de fora, livre.

 

Os céus estavam limpos. Ele rastejou através das ruas da vila, evitando a iluminação da lua e das estrelas, mas não conseguia resistir ao eventual vislumbre para cima. Nas montanhas, os corpos celestiais pareciam pertos o suficiente para alcançar do céu.

 

Ele chegou aos subúrbios onde as pessoas recém-chegadas se abrigavam em barracos e alpendres cobertos com palha até que alojamentos mais permanentes pudessem ser encontrados para eles. Evitando as famílias, Kavik passou pelos viajantes solitários até ver uma barraca com um círculo desenhado na terra à frente.

 

Ele cobriu a marca com seu pé.

 

— Mais quente que o comum nessa época do ano — disse à pessoa que estava dentro.

 

— Subestime a noite por sua conta e risco — veio a resposta por um vão no tecido.

 

— Sabe, talvez você tenha razão. — Eu reconheço sua voz, Do, Kavik queria surtar. Isso é idiota. — Posso entrar e descansar? Eu poderia… dar em troca uma história… da minha terra natal.

 

As senhas da Lótus Branco eram provavelmente tão velhas quanto Ayunerak.

 

— Certamente. O homem sábio sempre aprecia trocar histórias com um desconhecido interessante. — A barraca foi aberta totalmente.

 

Kavik se arrastou para dentro. Assim que fechou a barraca, ele sabia que podia falar sem a preocupação de ser ouvido. O tecido era de uma mistura genial que abafava o som; Ayunerak havia demonstrado na casa segura de Gidu.

 

Do sentava-se curvado abaixo do declive da barraca.

 

— Pelos espíritos, precisamos atualizar esses códigos — Kavik disse.

 

— Temos pessoas que estão estacionadas há muito tempo sem qualquer contato significativo, e trocar as senhas com muita frequência os excluiria. — Do revirou os olhos como se Kavik fosse completamente novo no jogo. — Qual seu relatório?

 

Ayunerak havia dado a ele alguns nomes da Lótus Branco qualificados para falar e ouvir por ela e Do era um deles. Mas Kavik ainda não estava totalmente confortável. Parte dele estava inclinada a tomar o partido de Yangchen quando ela suspeitou de um vazamento na organização.

 

Ele deixou de lado suas dúvidas e contou ao homem mais velho tudo que aconteceu desde que chegou.

 

— Ah, — Do bufou. — Isso é o que acontece quando deixamos crianças sentarem à mesa grande.

 

Na próxima vez que discutirmos, irei enfiar um pingente de gelo tão profundo no seu nariz que terá seu cérebro congelado.

 

— A Unanimidade se foi, — disse Kavik. — A Avatar me ordenou a encaminhar essa mensagem. Ela precisa da ajuda da Lótus Branco para manter os líderes das Quatro Nações bem longe de Taku. Se a convocação proceder como planejado, Chaisee terá a oportunidade de decapitar o mundo inteiro com apenas um golpe.

 

Do pensou sobre a situação.

 

— Mas se não ocorrer como planejado, Chaisee irá suspeitar que estamos atrás dela e retirar o dominador de fogo. Nunca teremos uma chance tão boa para achar e tomar controle dele. — Ele balançou a cabeça. — Não. Não podemos dar aos líderes quaisquer alertas de que algo está errado.

 

Kavik não podia acreditar no que estava ouvindo. Quando levada ao extremo, a Avatar sempre focava em minimizar os danos em detrimento da vitória.

 

— Está maluco. A Lótus Branco está disposta a apostar com o destino das Quatro Nações?

 

— Guerra é uma quantidade conhecida, — disse Do. — Esse dominador de fogo e sua técnica não são.

 

Do, que Kavik nunca havia levado muito a sério, ficou calmo e imóvel de uma forma que apenas um verdadeiro fanático seria capaz de ficar.

 

— A Lótus Branco é uma organização antiga, — Do disse. — Ela viu conflitos surgirem e desaparecerem. Chefes de Estado também. O que ela não pode tolerar é poder correndo desenfreado pelo mundo. Já temos uma dessas, e você a conhece bem.

 

O homem que entregava comida e notícias para a casa segura de Gidu teria ficado presunçoso sobre colocar o novo recruta em seu espaço, mas essa versão era imparcial, firme e muito mais assustadora.

 

— Temos lutado por equilíbrio por mais tempo do que possa imaginar e temos histórias que você nunca poderia sonhar, — disse Do. — Nossos melhores resultados sempre foram atingidos por controlar rédeas vitais de poder, desprezando o resto das coisas. Quem controlar a Unanimidade ao final desse conflitos terá os meios para remoldar o mundo como desejar. Não podemos deixar que caia nas mãos de outra pessoa, mesmo que signifique arriscar a vida de um monarca ou dois.

 

— E se tudo se despedaçar em Taku, o que a Lótus Branco fará?

 

A resposta de Do foi imediata, genérica e verdadeira. Um martelo que poderia ser batido sobre qualquer prego.

 

— Assistiremos ao desdobramento da crise, mantendo distância, e adotaremos a melhor posição para ajudar as Quatro Nações com as consequências, como temos feito por gerações. Você acredita que Ayunerak teria respondido diferente?

 

Não. O problema era que a Executora teria dito exatamente o mesmo. Ele podia ouvir o discurso de Do na voz enrugada de Ayunerak, como se seu espírito tivesse o possuído. Talvez após alcançar uma certa idade, uma pessoa passaria a tratar conflito como uma despesa recorrente, custosa mas suportável enquanto conforto relativo e estabilidade podiam ser mantidos por trás das linhas de frente. Yangchen teria abominado tal pensamento. Kavik podia perceber por que ela não se dava bem com a organização.

 

— Você não deverá abandonar o lado da Avatar em Taku, — disse Do. — Se ela encontrar pistas de Thapa ali, queremos saber sobre elas.

 

— Vocês estão espionando sua aliada ao invés do seu inimigo, — Kavik disse. — Está totalmente ao contrário.

 

— Não temos um espião instalado com o inimigo. Vou retransmitir a mensagem da Avatar para Ayunerak, mas não espere que nossa estratégia mude. Agora saia daqui antes que a Avatar perceba que você sumiu.

 

Kavik se levantou e se contorceu para fora da barraca. A entrada de tecido se fechou atrás dele. Ele respirou o ar fresco da montanha e olhou para o céu escuro da noite.

 

No caminho para a casa de chá, ele paralisou de repente, com suas botas enterradas no cascalho. A frustração que estava segurando começou a vazar aos montes, e ele balançou seu punho no ar vazio, não atingindo nada.

 

Faça o que te dizemos. Sabemos mais. Kavik estava esperando as coisas começarem a fazer sentido depois de se juntar à Lótus Branco.

 

Mas até então, não tinha sido diferente de morar com Kalyaan.

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Capítulo 13