O sol da tarde aquece meu rosto enquanto carrego as bandejas de pêssegos-lua pelo mercadão movimentado. O cheiro doce da fruta madura faz cócegas no meu nariz, se misturando com os aromas das barracas de comida. Este mercado é conhecido pela melhor comida de rua de todo Ba Sing Se. Linguiça grelhada. Biscoitos fritos. Meu estômago ronca de fome, lembrando que só comi um punhado de nozes hoje.
— Jin! Cuidado! — grita uma voz conhecida a poucos passos de mim. Viro rápido, quase derrubando as bandejas. Quase bato em alguém, mas consigo me equilibrar a tempo, enquanto vários pezinhos disparam ao meu redor.
— Foi mal! — ri uma das crianças. Vejo só os rabinhos de cabelo e um flash de verde antes que sumam na multidão.
— Pestinhas. — Um pouco do peso das bandejas desaparece dos meus braços. Minha melhor amiga, Susu, encara as crianças com cara feia por cima do meu ombro. — Vamos logo. Vovó já me perguntou um milhão de vezes que horas você ia chegar.
Sigo com ela pelo portão e subimos as escadas do prédio. As portas de correr batem atrás da gente quando chegamos ao segundo andar. É um espaço amplo, com janelas abertas ao fundo. Do lado direito, uma varanda dá vista para o pátio e os vários prédios apertadinhos dessa parte da cidade. O pessoal daqui chama o lugar de “Becos da Serpente”. Conheço esses becos tão bem quanto conheço meu próprio bairro, de tanto tempo que passo aqui.
No meio da sala, tem uma mesa redonda de madeira. A avó da Susu, Vovó Wen, está sentada num banquinho, trabalhando. Os dedos dela estão cobertos de farinha branca enquanto ela estica círculos de massa amarela. Ao lado, a Pequena Ming, a bebê da família Wen, senta na cadeirinha dela e amassa uma bolinha de massa com os punhos gordinhos.
Conheci a Susu nas primeiras semanas depois que a gente chegou a Ba Sing Se. Eu ficava de boca aberta com o tamanho de tudo — os muros enormes, os prédios altos, os corredores que pareciam não acabar nunca. Tinha tanta gente, tanta confusão. Gong-gong machucou a perna durante a nossa viagem difícil da vila até aqui, e ficou pra mim pegar comida nas filas, senão a gente passava fome.
Um dia, cheguei no fim da fila e percebi que tinha esquecido o talão do vovô. A cozinheira, com cara séria, apontou uma concha gigante na minha direção e mandou eu sair dali.
Mas aí apareceu uma garota da minha idade, ficou na minha frente e levantou um talão.
— Feliz agora? — ela disse, desafiando a cozinheira, e jogou o papel no balde. Ela já era mais alta do que eu na época. Lembro do sorriso enorme e confiante dela. Naquela hora, eu achei ela incrível.
A cozinheira resmungou, mas me deu outra tigela de mingau pra equilibrar na bandeja. Não parecia feliz.
— Obrigada — falei, mas a garota já estava me puxando pela mão, saindo da fila e me levando embora.
— Ainda não me agradece — disse, com um sorriso sapeca. — O talão era falso. Vamos ver quanto tempo ela leva pra perceber.
O grito de “Suyin Wen!” ecoou pela rua toda atrás da gente.
Hoje, anos depois, Susu continua sendo a mesma: convencendo todo mundo a fazer o que ela quer. Seja batendo num gongo pra atrair fregueses pra loja da família ou empurrando tarefas em cima dos amigos — tipo eu.
— Tá esperando o quê? — reclama Vovó Wen, me chamando de volta pro presente. — Larga isso logo!
— Já vou… — murmuro, colocando as bandejas em cima da que Susu já esvaziou no balde. — Tinha uma fila enorme na barraca da Cinda.
— Ótimo. — Vovó acena com a cabeça enquanto começo a arregaçar as mangas. — Nada de fruta estragada! — Ela ainda reclama das vezes que tivemos que jogar pêssego fora no mês passado, quando testamos um vendedor novo que não era tão bom quanto ela queria.
A sala tá quente demais, mesmo com a brisa que entra pelas janelas. Parece que entrei num pomar, com o ar cheio de cheiro de fruta madura. Os baldes estão cheios, esperando pra serem lavados, descascados, cortados e virarem recheio pros doces incríveis da Padaria Wen.
Vou pegar um balde vazio, mas Vovó faz “tss” e aponta pra bancada debaixo dos armários.
— Antes de começar, tem uma coisa pra você debaixo daquela tigela. — Ela sorri. Levanto a tigela e encontro uma empadinha de ovo brilhando, com a superfície bem amarela e lisinha. Um pedacinho da borda se solta, pego com o dedo, sem deixar nada cair.
— Injustiça! — grita Susu, tirando os pêssegos da água quente. — Você disse que não tinha mais nenhuma ontem!
Vovó Wen revira os olhos.
— Não tinha mais ontem pra você. Você comeu três. Tive que guardar uma pra Jin. — A Pequena Ming escuta a irmã reclamar e começa a resmungar também, batendo a colher na mesa.
Dou uma mordida, meus dentes afundam no recheio doce. As empadinhas são o maior sucesso da padaria. Sempre crocantes, nunca murchas, com casquinha que segura bem o recheio.
— Eu! Eu! — grita a bebê, com os bracinhos levantados. Ela é tão fofa que divido um pedacinho com ela. Ela me olha sorrindo, com um pedaço de massa preso no canto da boca. Susu ainda tá resmungando no fundo.
Termino a empadinha suspirando, querendo mais. Dou um abraço de lado na Vovó.
— Perfeita como sempre! A melhor doceira de todo Ba Sing Se! — falo, e ela ri.
— Quietinha. — Ela faz “tss” de novo, mas sei que gosta do elogio.
Não falo isso só pra agradar. Já provei várias empadinhas no Anel Inferior — são bem populares. Estão surgindo novas versões nas feiras — de chocolate, de lichia, de tudo quanto é jeito — por causa da chegada de tantos recém-chegados à cidade. Não podemos mais chamar de “refugiados”. Agora somos todos “novatos”, porque, dentro dessas muralhas, não tem guerra. Aqui estamos seguros.
Começo a ajudar Susu com os pêssegos-lua: ferver, descascar, cortar e tirar os caroços. Um balde vai esvaziando, os outros vão sendo cheios e levados pra sacada, pra abrir espaço.
A família Wen me acolheu de verdade. Me ajudaram a encontrar um cantinho perto daqui, indicaram um médico pro Gong-gong, e sempre me dão os pães do dia anterior pra eu economizar. Por mais que Susu e eu vivamos trocando farpas, sei que devo muito a ela e à família dela. Muito mais do que posso pagar.
— Susu! — chama alguém lá de baixo, no pátio.
— Que foi, mãe? — ela responde, me cutucando com o cotovelo. — Tenho que tirar esses daqui. Pode ver o que ela quer?
Com as mãos ainda grudentas de suco, vou até a varanda e me inclino. Lá embaixo, Mama Wen me vê e levanta uma das mãos.
— Ah, Jin! — ela diz, aliviada. — A Pao pediu mais umas caixas pra uma festa hoje à noite. Susu não vai conseguir levar tudo sozinha. Pode ir com ela?
Olho pra Susu. Ela já largou a faca e está toda empolgada. Detesta ficar na cozinha. Se tiver chance de sair, ela vai.
— A gente vai! — grita antes mesmo de eu limpar as mãos, e já tá me puxando escada abaixo.
Entramos pela porta lateral da loja, onde Mama Wen tá enchendo caixas com doces. Eles juntaram tudo o que podiam pra alugar o prédio inteiro — moram em cinco lá em cima e vendem os produtos no andar de baixo. A loja fica num beco ao lado de um dos cantos mais movimentados do Anel Inferior: o Mercado do Jardim. É onde o pessoal compra legumes e carne e depois passa aqui pra um docinho.
— Aí estão vocês! — diz Mama Wen alto. — Aqui está a filha que me dá cabelos brancos. — A mulher ao lado ri e comenta algo sobre o filho, as duas balançando a cabeça. Susu só revira os olhos.
A loja é apertada, cheira a massa doce. As cestas de entrega estão na porta, encostadas na estante cheia de pãezinhos. Ajudo Susu a colocar a dela nas costas. Ela pega a minha e ajeito as alças. Essas cestas foram ideia dela — bambu, pano e madeira, feitas pra proteger os doces durante a entrega.
— Voltem logo! E não se distraiam! — grita Mama Wen. — Jin! Vai voltar pro jantar?
— Ainda não sei! Posso pegar um desses?
Ela faz que sim e me manda ir. Pego um pãozinho de abóbora da estante e corro atrás da Susu, que já tá no meio da rua.
Mastigo o pão e ajeito a mochila. O mercado ainda tá cheio de gente. Jovens negociando preços, guardas comendo rapidinho, estudantes buscando o que jantar, vozes por todo lado.
Sigo escutando Susu tagarelar enquanto a gente sobe a colina em direção ao bairro da casa de chá. Já faz anos que entrei pela primeira vez nos portões de Ba Sing Se, mas tanta gente e agito ainda me deixam tonta.
O sol se põe atrás dos prédios. A cidade passa do calor do dia para o frescor da noite. As ruas escurecem, lanternas se acendem. Vizinhos gritam de um lado pro outro nos becos. De vez em quando, pinga água nas minhas costas quando passo debaixo dos varais.
Estamos quase chegando à Casa de Chá da Família Pao quando sinto cheiro de fumaça. Alguma coisa nesse cheiro mexe com minha memória. De repente, tô lá de novo. Vejo o rosto do meu pai me tirando da cama, me entregando pro Gong-gong. Sinto a mão dele me puxando. Rápido, rápido, ele sussurra. Paramos no alto da colina pra descansar, e olho pra trás. Todas as casas da vila estão em chamas. Chamas vermelhas, amarelas, douradas, lambendo o céu.
Perguntei se o Baba ia nos encontrar. Gong-gong disse:
— Ele vai se juntar a nós mais pra frente. Num lugar seguro.
Costumava olhar os murais da cidade, cheios de recados de pessoas procurando suas famílias — irmãos, tias, netas. Sempre pensei que, talvez um dia, veria meu nome ali. Ou meu rosto. Mas nunca vi. Nunca vi meus pais de novo. Doía demais, então parei de tentar. Mas tem um desses murais bem ali na esquina. E esse cheiro, essa fumaça, me faz pensar: Será que não vale a pena olhar? Só mais uma vez?
— Jin! — grita Susu lá na frente. — Tá olhando o quê?
Por mais próxima que eu seja da Susu, por mais que tenha me acostumado com a vida nova, isso é algo que ela nunca vai entender. Algo que não dá pra explicar. Ela sempre teve a família toda por perto.
— Nada! — grito de volta, virando o rosto.
Não adianta olhar.
Só traz tristeza.
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