Estou no meio do caminho até a porta quando uma mão pousa no meu ombro, me fazendo parar na hora. Quase dou um tapa por reflexo, achando que é um dos garotos vindo me zoar de novo — mas me contenho assim que vejo que é a Doutora Jan.
Ela é uma mulher mais velha, com linhas no rosto que lhe dão um ar de sabedoria e dignidade. Senti que podia confiar nela desde a primeira vez que segurou minha mão com sua firmeza calma e me ensinou com cuidado a preparar os tônicos do Gong-gong. Ela nunca me tratou como uma criança tola, e sim como uma de suas clientes respeitadas.
— Jin? Por que está indo embora de mãos vazias? — repreende a Doutora Jan, sabendo que eu nunca coloco o remédio direto na bolsa com medo de amassar o pacote entre meus livros e pergaminhos. — Xuan!
O jovem atrás do balcão logo aparece ao lado dela, com um olhar culpado no rosto. Os amigos dele já não estão por perto.
— Pegue o pacote da família Guan — ela ordena com firmeza. Ele sai correndo.
— Espere! — tento impedir, curvando a cabeça com respeito. — Doutora Jan, perdi minhas moedas pra pagar o remédio desta semana, mas eu juro por tudo que…
Ela me silencia com um olhar.
— Você tem sido uma cliente confiável há muitos meses, e sei que não deixaria de pagar sem um bom motivo. Pode esperar até vir buscar o próximo pacote pra compensar o pagamento perdido. Não se incomode em fazer outra viagem.
Tento protestar de novo, mas ela ignora minhas preocupações com o mesmo gesto que usou pra mandar Xuan obedecer.
— Preciso me desculpar pelo meu filho também — diz ela, quando ele retorna.
Filho? As bochechas dele estão levemente coradas enquanto evita meu olhar. Agora faz sentido. Eles têm o mesmo tom avermelhado de cabelo onde a luz bate. O mesmo nariz reto. Ela lhe dá uma leve cotovelada.
— Ele só estava ajudando hoje à tarde porque um dos meus funcionários está doente.
— Peço desculpas pelo meu comportamento rude — diz Xuan, curvando-se pela cintura e me entregando o pacote com as duas mãos. Mas, quando cruza os olhos comigo, o descontentamento ainda está ali, claro no olhar.
— Obrigada pela ajuda — respondo com uma reverência antes de sair com a cabeça erguida, tentando esconder o fato de que por dentro ainda estou me revirando de vergonha — como se uma nuvem de insetos estivesse prestes a devorar meu estômago. Essa sensação me acompanha até em casa.
Quando empurro o portão do jardim, vejo Gong-gong regando as plantas no pequeno pátio que dividimos com os apartamentos vizinhos.
— O que está fazendo? — corro até ele. — Você deveria estar descansando.
— Bobagem — diz ele, ignorando meu comentário e continuando a molhar as árvores. — Elas pareciam com sede.
Observo atentamente enquanto ele se move de planta em planta, arrastando um pouco a perna esquerda. O cabelo está penteado e a túnica do lado certo — sinal de que está tendo um de seus raros momentos de clareza. Esses dias têm sido cada vez mais raros.
Durante nossa viagem de Daying até Ba Sing Se, tivemos que subir por um desfiladeiro. Um trecho estava bloqueado por um deslizamento de pedras, e enquanto cruzávamos a trilha escorregadia, uma árvore caiu no nosso caminho. Gong-gong recebeu a maior parte do impacto ao me empurrar — junto com outra mulher — para longe.
Tentaram imobilizar a perna com o que tinham à mão, mas ela não cicatrizou direito, já que só conseguimos ver um médico de verdade semanas depois. Meu avô sempre brincava dizendo que a perna quebrada foi uma bênção, já que nos garantiu um lugar na caravana que nos trouxe com segurança até a cidade. Mas, apesar de ter recuperado a força na perna, ele começou a ter episódios de confusão e problemas de memória desde então.
Alguns dias, ele é o meu Gong-gong: a pessoa que sempre esteve ao meu lado desde que nasci. Um calígrafo habilidoso que já ajudou o governador com registros oficiais e comunicações entre a vila e a capital. Depois da mudança pra cá, voltou a trabalhar com encomendas — placas, avisos, cartas. Mas em outros dias, fica deitado, atordoado, achando que ainda estamos em Daying, confundindo meu rosto com o de outra pessoa. Doutora Jan diz que ele deve ter batido a cabeça na queda, e os efeitos disso continuam até hoje, piores do que os ferimentos físicos.
— Vamos subir — digo. — Está com fome?
Ajudo ele a subir os degraus rangentes. Tenho certeza de que um dia essa escada vai se soltar da parede, deixando a gente preso no andar de cima — mas não podemos pagar por um lugar melhor. Empurro a porta do nosso pequeno apartamento com o quadril e o ajudo a sentar numa das cadeiras.
Nosso cômodo principal está abarrotado de coisas. As prateleiras nas paredes estão cheias de pergaminhos e pilhas de papéis variados. Há caixas empilhadas nos cantos, guardando pincéis, bastões de tinta ou qualquer outra coisa relacionada à caligrafia. Mesmo assim, essa coleção é bem menor do que a que deixamos em Daying, onde Gong-gong tinha um cômodo inteiro só para o ofício.
Poderíamos ter alugado um apartamento no térreo, mas eu sabia que este aqui, com suas janelas grandes, traria mais luz durante o dia — e assim ele poderia trabalhar nos projetos por mais tempo. No meio de toda essa bagunça, a mesa perto da janela se mantém limpa. É o espaço reservado pras encomendas. Sempre arrumada. Um dos pergaminhos finalizados está ali, esperando a tinta secar.
Admiro os traços cuidadosos, os caracteres caprichados. Ele estudou aqui mesmo em Ba Sing Se. Tentou passar o amor pela caligrafia pra minha mãe, que não tinha interesse, e depois ensinou a mim.
Essa habilidade me ajudou a conseguir uma bolsa na academia de literatura, depois que um dos professores da escola do bairro notou minha escrita. Muitas crianças do Anel Inferior abandonam a escola aos treze ou quatorze anos, como a Susu, pra ajudar nos negócios da família. Mas Gong-gong insistiu pra eu continuar.
Tentei argumentar, dizendo que era como um porco-espinho correndo no meio de um campo de lhamas elegantes, mas ele não deixou que eu perdesse a chance de estudar na academia.
Estou prestes a sair de fininho depois de preparar um chá quente pra ele, mas ele levanta os olhos do jornal.
— Aonde você vai?
— Vou começar a preparar o remédio — digo.
— E os exercícios de caligrafia?
Gemo e pego um livro sobre formas poéticas da estante.
— Vou estudar enquanto mexo o tônico.
Gong-gong resmunga:
— Você ainda não entende o quanto isso é importante. Mas vai agradecer quando subir pros níveis mais avançados da academia. Vão criticar cada traço, cada ponto. Quanto mais prática, mais compreensão!
Eu queria trabalhar na Padaria Wen, mas ele nunca deixaria. O sonho dele é que eu siga seus passos. Trabalhe duro. Ganhe a atenção dos professores e conquiste uma das vagas disputadas da Universidade de Ba Sing Se. Mas ele sabe que preciso estudar outras matérias também, então acaba me deixando ir.
Depois de abanicar o fogo até a água começar a ferver, me sento na cozinha com o pequeno romance escondido no meio dos meus livros escolares. É uma história que a Susu me emprestou — sobre uma menina de Omashu que foge pro deserto pra escapar da família horrível e acaba encontrando amor e aventura nas areias.
Pelo menos minha vida não é como a dela, tratada como empregada desde pequena. O Anel Inferior pode ser cruel às vezes, mas também tem beleza. Como o riso na mesa da família da Susu. Como a parede de plantas no beco — um espaço comunitário de paz. Mesmo com garotos como o Xuan, que acham que estou mentindo pra tirar vantagem, ainda existe a gentileza da Doutora Jan, e sua confiança de que sou digna disso.
Depois que o tônico esfria, entrego pro Gong-gong e volto pra cozinha pra limpar. Poucos minutos depois, ele já está dormindo no quarto. Ronca tão alto que consigo ouvir mesmo subindo as escadas.
Fecho a porta do quarto deslizando-a devagar, abafando os roncos. Doutora Jan deve ter colocado algo novo na receita — ouviu minhas preocupações na última visita sobre o quanto ele andava agitado à noite. Empurro a mesa pro lado e desenrolo minha esteira pra iniciar minha rotina noturna também.
Quase não percebo os passos suaves no patamar enquanto penteio o cabelo. Uma silhueta escura aparece na janela. Meu coração dispara.
Me movo com cuidado até a porta. A mão se fecha sobre a bengala do Gong-gong, que deixo pendurada na parede. Há guardas que patrulham o Anel Inferior, mas eles se importam mais em manter a ordem do que em proteger os moradores. Principalmente à noite — quando sempre há o risco de alguém desesperado arrombar portas pra pegar o que puder, sem se importar com quem machuca no caminho.
— Psst… sou só eu — ouço uma voz conhecida sussurrar. Susu.
Claro. A única pessoa que viria até aqui a essa hora — embora ela normalmente me avise antes. Guardo a bengala no lugar e abro a porta pra deixá-la entrar.
Comment