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A Aurora de Yangchen: Vozes do Passado

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Jetsun perambulou pelo corredor, tentando ser mais rápida que os gritos. Os tetos altos do Templo do Ar do Oeste costumavam fazer ecos de sussurros e estilhaços de xícaras quebradas. Mesmo que a garota estivesse de volta à enfermaria sendo observada pelas anciãs, seus gritos de dor saíam de todas as superfícies, reverberando pelas paredes.

 

Jetsun não aguentou mais e saiu correndo. Ignorando as boas maneiras, ela disparou com rapidez por suas irmãs sacudindo túnicas, revirando tinteiros, arruinando prematuramente pinturas de areia colorida que iriam ser arruinadas somente depois de terminadas. Ninguém a repreendeu ou olhou de cara feia enquanto passava. Elas entendiam.

 

Quando o piso acabou, ela pulou. Apesar da grande dimensão da construção do templo de cabeça para baixo, havia pouco espaço para ficar de pé. Nada além de uma leve brisa e uma queda de mil metros conectando os pináculos. Ela não estava com seu planador. O perigo era evidente, mas ela conseguiria pular sem ele.

 

Uma lufada de ar nas costas e outra na sua túnica lhe deram elevação suficiente para pousar na segunda torre, a que comportava a Grandiosa Biblioteca. Tsering, cuidadora chefe dos livros, esperava na frente das estantes altas. Os olhos bondosos da mulher mais velha mostravam preocupação.

 

— Eu vi você chegando. Está acontecendo de novo?

 

Jetsun concordou.

 

— Mesose — ela disse.

 

Tsering soltou um suspiro, um assovio silencioso de frustração.

 

— Poderia ser Mesose, o teórico famoso da era Ru Ming. Existe um povoado Mesose em Hu Xin, ele pode ter recebido o nome de seu fundador. Ou pode ser só alguém chamado Mesose, mas nesse caso estamos empacadas.

 

Os Avatares tendiam a andar em círculos de prestígio. Ou então eles destacavam as pessoas em volta deles à fama.

 

— Tem que ser o primeiro. — disse Jetsun.

 

Outro gemido fez as duas virarem suas cabeças. A criança estava sofrendo.

 

— Me ajude que vai agilizar. — Tsering falou. — Lado Noroeste, comece com as prateleiras de poesia, Ru com três gotas do Radical 85.

 

Elas se separaram para procurar diferentes seções no antigo depósito. Jetsun correu os olhos sobre rótulos e títulos o mais rápido que conseguia. Nem todos os exemplares cabiam em uma prateleira. Grande parte dos volumes guardados no Templo do Oeste eram tão velhos que estavam escritos em tiras de bambu ao invés de papel. Ela passou por rolos de textos mais longos que os pilares que conectam o teto ao piso.

 

Cinco minutos depois ela emergiu das profundezas da biblioteca, segurando um tratado de alguma coisa que ela não sabia. O que importava era o nome do autor.

 

Tsering se juntou a ela perto da porta.

 

— Não consegui achar nenhuma pista. Você está segurando nossa melhor chance.

 

— Obrigada.

 

Jetsun disparou de volta na direção que viera, o livro apertado embaixo de seu braço.

 

— Use seu planador da próxima vez! — Tsering gritou.

 


 

Jetsun correu de volta a enfermaria. O grupo de anciãs abriu caminho para ela passar. Os gritos da garota tinham virado um choro seco e assombroso. Ela socava seu travesseiro várias e várias vezes, não era como se estivesse tremendo de febre, mas sim um movimento consciente vindo de uma angústia constante e consumidora, que parecia estar presente bem antes de seus oito anos.

 

— Vamos deixa-las a sós. — disse a Abadessa Dagmola. Ela e o resto das acólitas saíram. Ter muitas pessoas por perto estragava o efeito às vezes. Jetsun abriu o livro em uma página aleatória e começou a ler.

 

— “O nível de risco pode ser determinado por elevação, proximidade de uma fonte de água, vulnerabilidade a fluxos fortes e potencial perigo econômico.” — Ela disse.

 

— Confusa, ela virou brevemente o livro para olhar a capa. “Discussão sobre o Controle de Planície Aluvial”.

 

Porque diachos nós temos esse livro? Jetsun balançou a cabeça. Não importava.

 

— “Entender as medidas prévias tomadas para amenizar o dano de inundações é essencial, pois elas podem juntar prejuízo ao invés de reduzi-lo.” — A menina deu um suspiro estremecido e relaxou.

 

— Metade de um ano e é só isso que você conseguiu? — Ela disse sorrindo para o nada. — Você precisa parar de pegar vários trabalhos ao mesmo tempo, Se-Se.

 

Funcionou. Graças aos espíritos, funcionou. Jetsun continuou lendo, navegando pelos conceitos desconhecidos de forma mecânica.

 

— “Em relação a fenda de depósito…”

 

A primeira vez que a menina passou por isso, ninguém tinha ideia do que estava acontecendo. As curandeiras fizeram seu melhor para diminuir sua febre e mantê-la bem confortável. Os episódios voltaram a acontecer, com ela balbuciando de forma incoerente no início, mas, eventualmente, começaram a formar sentenças, nomes, pedaços de conversas. As palavras não faziam nenhum sentido para suas cuidadoras, até que um dia, a ouviram falar com Sua Majestade, o Rei da Terra Zhoulai. Um homem que ela nunca havia conhecido, que faleceu três séculos atrás.

 

Felizmente, a Abadessa teve a ideia de anotar. Ela havia escrito todas as palavras compreendidas e depois de analisar suas anotações ela encontrou um padrão. Os nomes: Angilirq, Praew, Yotogawa. Nomes de todas as nações.

 

Nomes dos companheiros de Avatares antigos.

 

Nem todo fantasma que a criança falava era famoso e, alguns que eram, não possuíam vínculos reconhecidos com um Avatar. Jetsun só conseguia imaginar as histórias que foram perdidas com o tempo, passando pela garota, com pequenos fragmentos prendendo em sua garganta.

 

As conversas eram agradáveis, na maioria das vezes. Ela dava risadas com seus amigos em cidades que haviam trocado de nome, províncias que já não existiam mais. Jetsun já havia observado ela pular de sua cama e comemorar o sucesso de caçadas de inverno lendárias, sentar no chão e meditar com a paz interior de outra pessoa.

 

Mas ocasionalmente ela acordava com pesadelos. Crises de sofrimento e raiva que ameaçavam acabar com ela. Não murmurava os nomes, mas sim gritava como se tivesse sido traída pelo próprio universo.

 

Por acaso, foi descoberto que, às vezes, ela conseguia se acalmar quando entendiam quem era o fantasma com quem ela estava conversando, quando possível, e falar com ela a partir dessa perspectiva. Era melhor quando eles entravam mais profundamente no papel, como pais lendo uma história para dormir, imitando as vozes de personagens. A familiaridade era o melhor remédio que tinham e eles atuavam da melhor forma que conseguiam por ela.

 

A menina já cochilava quando Jetsun chegou no capítulo sobre o jeito certo de construir paredões. Tsering entrou no quarto. Sem planador, notou Jetsun. Ela provavelmente queria saber se ainda conseguia fazer aquele pulo que Jetsun fez horas antes.

 

— Como ela está? — perguntou a bibliotecária.

 

— Melhor — disse Jetsun. — Quem era Mesose?

 

— Um companheiro de Avatar Gun — Tsering respondeu, aproximando-se da cama. — Um bom poeta e engenheiro. Morreu em Ha’an quando Gun fracassou tentando segurar um tsunami.

 

Jetsun sentiu um gosto ruim na boca.

 

— Fracassou?

 

Não era uma palavra que ela usaria para descrever alguém, Avatar ou não, que corajosamente enfrentou uma força da natureza. O porto de Ha’an ainda estava por inteiro, mas, pela descrição, parecia que ele poderia ter sido apagado do mapa junto com todos que viviam lá naquela época.

 

— É o que está escrito. Depois que Mesose se afogou, Gun desapareceu por um bom tempo até conseguir voltar a cumprir seu dever.

 

Você estava de luto. Se as águas que Gun lutou eram as mesmas que mataram Mesose, então a garota e a vida passada que a atravessava devem ter visto pessoalmente seu amigo dar seu último suspiro até que se afogou abaixo das ondas. Teriam procurado por um corpo entre os destroços.

 

E o pior de tudo, Jetsun pensou, é que deviam ter penado com a terrível pergunta ‘e se eu tivesse feito as coisas de uma forma diferente? E se, e se, e se?’ Talvez Gun que exigiu o rótulo de fracasso ao acontecimento.

 

Era muito injusto. Relembrar eventos de uma só vida já era muito doloroso. Reviver uma dúzia de vidas deve ser… Bom, como ser atingido por um tsunami. Ser arrastado por forças fora de seu controle.

 

— Ela é uma criança esperta. — Disse Jetsun — Se ela continuar tendo essas visões, vai descobrir quem ela é antes de completar dezesseis anos.

 

Tsering suspirou. Ela estendeu o braço e passou a mão no cabelo da menina adormecida, agora encharcada de suor.

 

— Oh, pequena Yangchen — ela falou — O que nós iremos fazer com você?

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Comment

  1. Sara Apollo disse:

    Isso está perfeito!!!

  2. pedra disse:

    Coitadinha da Yangchen 😢

  3. Vana disse:

    Primeiro capítulo poucas frases e me encontro fascinada com a história >⁠.⁠<

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Chapter 1