Acontece que a punição de Kavik foi bem simples. Começou com a boa e velha agressão.
— Arruaceiro! — Uma bota aterrissou em seu estômago enquanto ele estava deitado no chão, em posição fetal. — Como você ousa profanar os aposentos do Avatar? Colocar suas mãos imundas nela!
Kavik notou a barra adornada das roupas dos guardas quando eles o chutavam. Vermelho, verde, azul. Pelo menos machucá-lo era um esforço multinacional. Ele tentou explicar com o pouco de ar que lhe restava: —Eu não quis…
— Calado! — Um punho acertou sua mandíbula. Ele sentiu o gosto de sangue dentro de sua boca.
Kavik enterrou o rosto nos cotovelos, mas os golpes cessaram.
— Levantem ele! — disse o líder. — Ela está vindo.
O colocaram de pé enquanto ele ainda estava atordoado. Ele ouviu passos descendo as escadas. Uma bainha de tecido balançando, e de um tilintar de adereços. Uma vez que sua visão voltou a ficar nítida, o Avatar estava diante dele em seus trajes completos. Uma flor de amarelo e laranja, sarapintada com medalhões de madeira. Ela era surpreendentemente bela. Suas feições serenas e seus olhos cinzas se destacavam contra as paredes de gelo do porão, como uma obra de arte.
Ele se conteve e rapidamente baniu o pensamento de sua cabeça. Aquela era o Avatar.
Ela notou a pequena linha de sangue escorrendo do canto da boca de Kavik. — Capitão Gai. — Disse ela líder de seus guardas.
— Sim, senhorita?
— Você está despedido.
A franqueza de sua declaração ricocheteou nos ouvidos de Kavik. Gai precisava de um momento também.
— Perdão? — ele disse.
O Avatar virou-se para ele. — Você e seus homens estão todos despedidos. Eu falei para não o machucar e você o fez. O que não ficou compreendido?
— Mas… mas…
— Nenhum de vocês está mais apto para o trabalho de segurança na comitiva do Avatar. — Sua voz nunca subiu um tom a mais no diálogo, e mesmo assim os homens se desanimaram como se ela cuspisse fogo pelas narinas, assim como os dragões. — Reporte para Boma e diga o que você fez para que ele possa riscar seus nomes das listas. Agora.
Kavik nunca tinha visto tantos homens adultos abaixarem suas cabeças como crianças. Eles subiram as escadas deixando-o sozinho com o Avatar. Ela deu um passo para se aproximar.
Ele se jogou aos pés dela, pressionando a testa no chão frio.
— Perdoe-me — Ele lamentava. — Eu sinto muito! Eu não sabia! Eu não sabia!
— Shhhh… Está tudo bem. — Ela se ajoelhou e levantou a cabeça dele. Por mais que suas lágrimas atrapalhassem sua visão, ele a viu dominar água limpa retirando-a de uma bacia. O líquido brilhava e pulsava quando ela pressionava sobre seu rosto. O inchaço diminuiu e ele pode sentir o corte dentro de sua boca fechar.
— Agora, as mãos. — Ela falou. — Antes que elas caiam.
Ela notou os estágios iniciais das queimaduras de congelamento. Kavik estendeu suas mãos. O Avatar colou os dedos dele entre os dela. O gesto foi desconfortavelmente íntimo, e desta vez o brilho era morno. Os sentidos retornaram à sua pele. Consertar os danos causados pelo frio era um processo longo e específico, e ele se questionava como foi que ela adquiriu esse conhecimento.
— Você está ferido em algum outro lugar? — Ela perguntou. — E seu corpo?
Ele balançou a cabeça. Sua barriga tinha hematomas, mas suas costelas estavam intactas.
— Estou bem.
Ela olhou como se duvidasse bastante.
— Você escolheu o estágio errado dentro do ciclo Avatar para roubar. Os Nômades do Ar não têm muitas posses físicas.
Ele a devia a verdade.
— Eu não sabia que era o quarto do Avatar. Eu não vim atrás de objetos de valor. Eu apenas queria informações que eu pudesse vender.
— Ah! — Ela ergueu as sobrancelhas, interessada. — Você deve ser um dos mensageiros pelos quais Bin-Er é tão famoso. Eu fui avisada antes de chegar aqui que estaria entrando em uma cidade de espiões.
Então ela tinha sido informada. Nos territórios dos Shang, informações de inteligência eram, com certeza, a moeda mais desejável. Fortunas viajavam num papel. Acordos sendo feitos, contratos, notas de reuniões, até mesmo cartas com palavras ríspidas poderiam ser oportunidades de negócios com um potencial ilimitado de ganhos para qualquer pessoa com o conhecimento. Às vezes, só havia um acordo verbalizado com uma soma obscena de dinheiro envolvido, caso você precisasse de um ouvinte na hora e no lugar certo.
O Avatar suspirou e balançou a cabeça.
— Todos que você conhece em Bin-Er estão no bolso de alguém, ou ao menos foi o que me disseram. Para qual Shang você trabalha?
— Nenhum. — Disse Kavik. — Sou independente. Eu apenas tento sobreviver diariamente.
— Sustenta uma família?
— Não. — Sua voz falhou. — Assim que meus pais morreram eu vim para Bin-Er sozinho. Cheguei até pensar que conseguiria um trabalho estável, mas eu não consegui encontrar nada. Não possuo nada em meu nome.
— Você está sozinho. — Ela olhou para longe, como se estivesse refletindo sobre algum cheiro estranho que tivesse sentido, antes de voltar para ele. — Eu sinto muito. Eu nunca estive sozinha, nunca mesmo. Eu não consigo imaginar como tem sido para você.
— É difícil na cidade. — Ele fungou e limpou o próprio nariz. — Equipes de divulgação chegam a sua aldeia e te contam histórias sobre as ruas de Bin-Er serem pavimentadas de ouro e que qualquer um que seja inteligente o bastante pode se tornar um grande comerciante, contanto que trabalhe arduamente. — Ele contou. — Então você chega aqui e encontra a dura verdade. Você não vale nada até que alguém decida o que você é.
O lampião piscou, e ele pensou ter visto uma luz brilhar de raiva, aproximado com ira, e uma ondulação do rosto dela. Mas ele apenas deve só ter imaginado. Sua expressão graciosa de Nômade do Ar continuava firme apesar da curva de seus lábios retorcidos.
— Eu espero mudar essas atitudes antes que elas se tornem permanentes. Permitir que um problema dure por muito tempo e pessoas começarem a acreditar que não é um problema. — Ela mordeu a bochecha. — Talvez eu já possa começar contigo. Você apenas realiza tarefas pelo dinheiro, certo?
Kavik encolheu os ombros.
— Por que motivo qualquer um entraria nesse tipo de negócio?
— Bem, isso deve resolver. — Ela colocou as mãos de dentro de suas largas vestes e retirou uma bolsa grande. — Se você tivesse um pouco de prata pesada com você, talvez você fosse um ladrão menos motivado.
— Espere. — Em algum momento, etapas foram puladas na linha de raciocínio dela. — Eu não estou entendendo.
Ela pensou que ele estivesse confuso a respeito do por que dela ter dinheiro para início de conversa.
— Orçamento de despesas diplomáticas. — Ela explicou.
— Não é isso. — Porque ela estaria carregando os bolsos dele antes de enviá-lo para encarar a sua punição, ao menos que… — Você vai me libertar? — Kavik perguntou.
— O que você quer que eu faça, que te atire na prisão do Templo do Ar? Confie em mim, isto é uma questão de conveniência. Eu não tenho que lidar com o trabalho que você daria de qualquer jeito, então você ficará fora das ruas pelo tempo que esse presente pode durar. — Ela afrouxou os cordões.
Ele não conseguia acreditar. Seus olhos e ouvidos o enganavam.
— Espere. — Kavik balbuciou, lembrando de várias partes de regulamentos espirituais que nem ele tinha certeza se estavam corretos. — Um Avatar do Ar não deveria tocar em dinheiro!
Ela revirou os olhos, e mais por ele do que por ela, alargou a boca do saco sem tocar em seu conteúdo. Segurando o saco como um jarro, ela derramou um punhado de moedas nas mãos de Kavik. Ele observou a quantidade de generosidade, sendo um milagre para uma cidade tão mercenária quanto Bin-Er.
Quando ela terminou, ela gesticulou para a parede atrás dele.
— Há uma saída que leva para o lado de fora. Saía daqui enquanto você tem chance. E não deixe que alguém te veja.
Os Nômades do Ar eram realmente espiritualmente diferentes. Kavik colocou as moedas em seu bolso e empurrou a porta congelada. Ele subiu as escadas estreitas, ainda sem conseguir acreditar no que aconteceu, a cada passo que dava. Desafiante assim como tinha sido sua noite, ele foi levado à rua e à liberdade.
Ninguém o abordou. Era como se a bênção do Avatar permanecesse sobre sua pele como uma armadura. Ele deu a volta no prédio e pegou sua parca. Uma vez que ele estava completamente vestido, ele se juntou aos retardatários restantes no distrito internacional.
O que acabou de acontecer? —Ele pensou, olhando para o céu estrelado. Ele nunca seria capaz de explicar isso, nem nesta e nem na próxima era.
Kavik andou por mais algumas quadras e virou repentinamente para a direita, usando um homem grande como uma proteção, para que qualquer um que o estivesse seguindo pudesse ver sua mudança de direção até que fosse tarde demais.
Correndo pelo beco, ele abriu uma porta no qual ele sabia que estava destrancada e a deixou entreaberta, para fazer parecer que ele tinha entrado quando não tinha. O caminho verdadeiro era a parede de tijolos e coberta por uma espessa camada de gelo formada por um vazamento no encanamento. Com a dominação de água, ele formou um corrimão que o permitiu atravessar para o outro lado facilmente. Em seguida, quebrou o gelo, que caiu no chão e se estilhaçou, parecendo uma vítima de seu próprio peso.
Ele virou novamente a direita, e em seguida a esquerda, e a direita mais uma vez. Só quando teve certeza de que não havia sido seguido, ele deu a volta no quarteirão até a entrada de uma sala mal iluminada. Ele bateu na porta normalmente, sem nenhuma forma.
Ela se abriu. Uma mulher de cabelo grisalho da Tribo da Água olhou atentamente para Kavik.
— Ora, você parece encantado. — disse Mama Ayunerak. — Eu não vejo esse sorriso bobo enorme desde que Meihua terminou com você.
Escapar com vida de uma situação como aquela podia fazer isso com um homem. Kavik olhou por cima do ombro dela, para dentro do local. O abrigo estava lotado esta noite, com mesas e bancos cheios de homens e mulheres quase mergulhando seus rostos em tigelas de mingau de raízes-do-mar.
Ayunerak administrava uma cozinha para trabalhadores desempregados, normalmente recém-chegados que dependiam de refeições gratuitas que ela fornecia. A cidade devia ter duplicado de tamanho desde que ela começou a morar lá, mas a anciã não ia deixar os costumes da hospitalidade da Tribo da Água serem esquecidos. A comida era para ser compartilhada com quem necessitasse.
— Eu tenho algo para você. — disse Kavik. Ele mostrou um punhado de moedas, o primeiro de vários.
Em choque, Ayunerak ficou boquiaberta.
— O… o que… on… onde você…?
— Não pergunte. — Ele pegou o dinheiro de seus bolsos e colocou nas mãos dela, tentando não deixar nenhuma cair. Ele deveria ter pedido ao Avatar a bolsa em si. Ela era gentil o suficiente para ter a dado para ele.
— Já faz um bom tempo desde que você visitou seus primos no porto Tuugaq, certo? — Kavik perguntou. — Pegue um pouco desse dinheiro e vá vê-los. Faça isso por todos nós, tolos, que não temos direitos a viajar. — Ele rapidamente acariciou a mulher na bochecha, pois ela estava atônita. — Eu não estive aqui.
Ayunerak estava estupefata para tentar gritar com ele assim que ele correu de volta para a esquina. Perto da lixeira da cozinha, perto do chão e coberto de folhas de repolho podres, tinha um tijolo solto. E escondido ali, tinha uma chave.
Sem mais incidentes, ele chegou ao bairro da Tribo da Água de Bin-Er. As habitações foram adaptadas de acordo com as estações, e agora construídas com painéis de neve soprados pelo vento. Feitas de inverno para resistir ao inverno. Quando ficava mais quente no verão, os moradores mudavam para casas de grama e barracas de tendas quando necessário.
Olhando para as cúpulas brancas, Kavik torceu seu lábio superior em uma explosão de irritação no gelo quadrado da Mansão Azul. Ele poderia facilmente ter imaginado que foi construída pelos dignitários intermediários que apenas queriam a novidade de dormir sob as águas congeladas.
Mas, que direito ele tinha de criticar? Por perto havia uma das maiores casas da vizinhança, uma velha e robusta construção da antiga Bin-Er que parecia pertencer a Omashu. Ele subiu o caminho de terra dura, sacudiu a neve de suas botas e usou sua chave para destrancar a porta.
O ar quente e úmido banhava seu rosto.
— Cheguei. — Ele gritou.
Lá dentro, uma mulher parou de vigiar a panela de ensopado que estava mexendo, e olhou para cima. A mãe dele afastou uma mecha do cabelo do rosto e lhe deu um sorriso.
— Você voltou tarde. Como foi seu dia?
— Foi normal. — Quase morri. Conheci o Avatar. Roubei dela. Ele tirou a bota e pegou o envelope dobrado que ele conseguiu pegar no quarto dela antes de mergulhar pelo chão do quarto do Avatar.
Pegar itens em si não era tão bom quanto deixá-los quietos. O Avatar perceberia que uma das cartas dela estava faltando, e depois começaria um ciclo interminável dela sabendo que outra pessoa sabia o que ela sabia. O jogo da informação frequentemente se tornava em espirais sem fim, uma cobra-aranha engolindo sua própria cauda.
Mas o envelope ainda valia alguma coisa só por simplesmente ter passado pelas mãos dela. Ele tinha que decidir se quebrava o selo; o valor poderia ser maior com uma aura de mistério ao seu redor.
Ele o enfiou debaixo de sua camisa para mais tarde.
— Cuidado quando for passar pela praça amanhã. — Ele disse para o homem que estava sentado atrás da mesa no canto. — Teve um tumulto hoje mais cedo.
O pai dele mal olhou para cima dos livros-razão que ele trouxe da casa de contabilidade. Um resmungo foi a resposta. Mais reconhecimento do que Kavik teve do que a maioria das noites. Ele pendurou seu casaco. Sem as camadas extras, conseguia ouvir seu estômago roncar. Apesar do hematoma que ele sabia que estava aumentando em seu abdômen, a maior sensação do momento era a fome.
— O que tem para o jantar? — ele perguntou a sua família.
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