— Você não pensou direito — disse Tael enquanto conduzia Kavik através dos destroços no armazém.
Verdade. Tinha sido uma coisa de calor do momento. E como a maioria dos impulsos, dividido entre lamentável e vitorioso.
Algumas das caixas Kavik abriu com lâminas de água, cortando as faces de pilhas inteiras onde elas estavam perfeitamente alinhadas; outras ele explodiu com pressão interna, arrancando pregos e pinos de seus furos. Todos lá dentro, exceto ele e Jujinta, foram derrubados por uma enxurrada pegajosa de água da chuva cheia de detritos.
Como o último homem de pé no rescaldo, Kavik vasculhou os destroços antes que os reforços da associação chegassem. E para o seu temor mais profundo, ele não encontrou nada fora do comum. Nada que pudesse ter estimulado uma tomada de poder. Sem dinheiro, sem armas, sem cofres trancados escondidos dentro das caixas.
A explicação mais provável era de que ele deixou algo escapar. Mas acabou que Tael era o tipo de idiota que esfregaria o nariz de um animal de estimação na mancha que ele fez para ensinar ao pobre animal uma lição.
— Couros de rinoceronte de Komodo, raspados, cinco palhetes — disse Tael, espreitando a cabeça para dentro — Negligenciado.
— Couros de rinoceronte de Komodo, raspados, cinco palhetes. — Kavik repetiu. Ele estremeceu quando colocou uma marca ao lado da entrada no próprio diário de bordo pelo qual veio aqui. — Negligenciado.
— Selos cortados em branco, dez dúzias. Bons, surpreendentemente.
Cerca de metade dos carregamentos foram declarados arruinados depois que ele e Tael os bisbilhotaram.
— Selos cortados em branco, bons.
Kavik estava coletando todas as informações que ele poderia esperar, em grandes detalhes, com uma confirmação extra de testemunha ocular. O sonho de um espião. O único problema era que o diário de bordo que ele estava segurando continha uma conta de quanto de dinheiro ele havia pessoalmente custado aos Zongdu do Jonduri esta noite, e crescia em passos gigantescos a cada carregamento declarado irrecuperável.
Era como forçar o prisioneiro a construir sua própria forca.
— Ameixas marinhas manchadas, secas, vinte barris, negligenciadas — disse Tael — Ameixas marinhas listradas, secas, vinte barris, negligenciadas. Pele de cobra-vison, colares e rufos, caixa cheia, negligenciada. Lã de iaque-camelo, segunda série, quinhentas meadas, negligenciadas.
Ele se virou para Kavik.
— E terminamos. Você meio que acabou em uma sequência de derrotas.
O valor das mercadorias destruídas era de um tamanho onde os números não importavam mais, no que dizia respeito à vida de Kavik.
— Eles iam queimar tudo — disse ele — Eu não destruí essas coisas. Eu salvei metade delas.
— Afirmação ousada. Veremos se o chefe-chefe concorda depois que você explicar o que aconteceu. Venha. Tenho uma carona esperando lá fora.
Kavik quebrou a ponta do seu lápis de carvão. O chefe-chefe? Ele ia encontrar Chaisee? É claro. Quanto maior o erro, mais alto você tem que levantar a bandeira da sua vergonha. Ele seguiu Tael até a porta, com seus braços e pernas de repente pesados.
Junjita e o resto do pequeno esquadrão da associação que tinham entrado com Kavik, esperavam na saída. Pang, seu líder nominal, zombou de Kavik e assentiu enquanto Tael o conduzia para fora. O cara novo levaria a culpa, como era tradição.
— Não fique tão convencido, Pang — disse Tael — Você vai prestar contas por isso também.
Quando Pang gaguejou, sua língua saiu pelo buraco em seus dentes.
— O que?! Como isso é minha culpa? Eu pareço um dominador de água para você?
Tael estava impassível.
— Não importa. Você estava no comando. Seu ataque, sua perda.
— Você nos enviou aqui sem força suficiente e nos deixou no escuro! Nós fizemos o melhor que pudemos! — Pang estava frenético com a perspectiva de ser agrupado na próxima punição de Kavik — Eu mesmo explico a Chaisee se for preciso! Isso não foi culpa minha!
Tael parou e fez uma careta, fazendo a cara de uma pessoa que deu uma topada, mais irritado com sua própria estupidez do que qualquer outra coisa. Ele se virou lentamente e em seguida bateu sua mão no estômago de Pang.
Os olhos de Pang se arregalaram, e ele deu uma única tossida fraca. A princípio Kavik pensou que Tael tinha apenas o socado, um golpe surpresa no corpo. Não há vergonha em tombar com um desses. Mas um gotejamento escuro respingou no chão.
— Chaisee — Tael disse em voz alta, para o benefício de todas e quaisquer testemunhas — Quem é esse? Eu não conheço nenhum Chaisee.
Kavik saltou para trás da poça de sangue no chão como se fosse um inseto vivo e saltitante. Ele fechou os olhos e se encolheu, mas a imagem de Tael segurando Pang pelo pescoço com uma mão e levando a ponta de sua faca para cima com a outra ficaria gravada em seus pesadelos.
Não, ele sussurrou em sua cabeça. Ele se agachou como se ficando mais baixo e se abrigando, fosse o proteger de outra morte. Não, não, não.
Os arquejos sangrentos de Pang se tornaram os sons mais altos de todo o armazém. E então, eles cessaram.
— Enrole-o na lã e molhe-o antes de você pregar e fechar a caixa, assim a coisa toda apodrece. — Kavik ouviu Tael dizer — Isso vai esconder o cheiro até que nós possamos jogar as mercadorias fora.
Kavik abriu um pouco seus olhos embaçados para ver dois homens arrastando o corpo de Pang para longe. Eles foram muito mais suaves do que ele tinha sido com Qiu. A prática deve ter levado a perfeição.
— Levante-se, Sifu Dominador de Água — Tael disse para Kavik enquanto limpava a lâmina da arma do crime com um pano — O chefe-chefe não tem tempo para esperar você criar coragem.
Junjinta se colocou entre eles. Ele recuperou seu juízo da luta e estava de volta ao seu eu habitual, imperturbável. A morte de Pang não o afetou minimamente, e nem Tael.
— Esse é meu parceiro — disse ele.
Tael jogou a cabeça para trás e suspirou.
— Juji, eu só coloquei vocês dois juntos porque eu achei que daria boas risadas. E se você não recuar agora, bem, há muito mais caixas que precisam ser descartadas.
Kavik só conseguia pensar em como Jujinta estava sem facas. Tael ainda tinha uma. Ele se levantou todo e colocou uma mão trêmula no ombro de Jujinta.
— Vai ficar tudo bem — disse ele, tentando manter sua voz firme.
Ele ainda tinha mais uma, enrolada no seu pescoço.
— Eu vou ficar bem.
Ele tentou uma sacudida tranquilizadora. Foram três vezes antes que Jujinta estivesse convencido o suficiente para se afastar.
Kavik seguiu Tael pela rua e entrou na carruagem que estava esperando por eles. Juntos eles partiram para ver onde a noite terminaria.
A noite ainda era uma criança para os padrões Jonduri. A carruagem de Tael era fechada, de modo que os sons passageiros da folia foram abafados. Uma explosão repentina de risos de uma festa de bêbados fez Kavik apertar o diário de bordo com mais força. O fato de que lhe disseram para segurar isso era provavelmente para ser humilhante a esse ponto. Um peso em volta do seu pescoço.
Uma das rodas mergulhou com força em um buraco. Os ouvidos de Kavik se arrebitaram para um respingo, água que ele poderia ter usado para se proteger. Mas não havia nenhuma.
— Algo em sua mente? — disse Tael.
Um bom negócio.
— Pang era seu homem, por completo. Ele lutou pela associação e é assim que você o retribui?
— Onde Pang escolheu depositar a fé dele não é da minha conta. Ele tinha um problema em manter a boca fechada, e ele estragou o ataque. Em Jonduri, pessoas que se tornam um problema maior do que valem tendem a desaparecer.
A bile subiu para a garganta de Kavik. Qualquer alegação de que essa cidade era melhor do que Bin-Er era uma mentira. Era apenas mais organizada.
— O que vai acontecer com os trabalhadores?
— Bem, eles têm famílias, então nós não podemos fazê-los desaparecer facilmente. E vai ser difícil para nós culpá-los pelas perdas de cargas, porque nenhum deles era dominador de água. Por ora, eles vão sentar em um brigue do capitão do porto, sãos e salvos. — Tael bateu na parede da carruagem com os dedos — Se eu me lembro corretamente, você não possui família na cidade, certo?
Kavik encolheu-se em seu assento. Ele era um rosto novo, assim como ele e Yangchen haviam discutido. Completamente limpo. A associação não precisava se preocupar com ninguém vindo procurá-lo.
Ele evitou tocar o apito de bisão sob o seu kuspuk[1]. Ainda não. Sua mente estava em tantos pedaços quanto o inventário. Apesar do fato de que ele saiu em branco de duas inspeções diferentes no armazém, havia algo no diário de bordo que ele sentia ser a peça faltante na sua missão. Ele só não podia colocar seus dedos nela ainda. Se ele sobrevivesse a aquela noite e fizesse contato com os outros, ele poderia tentar recriar o seu conteúdo da memória. Se.
[1] Kuspuk: é uma bata alongada, que possui capuz e grandes bolsos na frente.
A carruagem chegou a uma parada. Kavik ouviu o cocheiro descer do lado de fora e abrir a porta. Tael fez sinal para ele sair primeiro.
Kavik andou por um caminho que levava a uma luxuosa cabana de dois andares. As janelas, janelas de vidro verdadeiro, eram brilhantes. O chilrear dos grilos-cigarra sobre o gramado e o carcarejar suave dos cavalos-avestruz o fizeram pensar em uma fazenda. Animais são abatidos em fazendas.
— Ali dentro. — disse Tael — E mantenha o livro com você.
Eles caminharam até a entrada, a qual Tael abriu para ele como um convidado de honra. Kavik fez uma pausa para considerar se o apito de bisão poderia ser ouvido de dentro de uma construção.
Ele tendeu para a opção de pular no outro homem agora e lutar por sua vida. Seu primeiro passo para dentro da casa seria um momento oportuno para enfiar uma faca entre suas costelas.
— Você não vem? — ele perguntou.
— Eu fui ordenado a ficar para trás— disse Tael — Eu sou apenas seu humilde mensageiro. O chefe-chefe disse para você procurar um lugar para sentar e esperar.
Era agora ou nunca. Kavik respirou fundo e cruzou a soleira. A porta se fechou com força atrás dele.
Ele se viu em um estreito labirinto de luxo. Encaixotado por um corredor de madeira de aroma adocicado, seu pé afundava no carpete tão exuberante quanto um pântano. Um cristal caro e brilhante, cortado em dezenas de facetas, pendia acima de sua cabeça.
— Olá? — ele tentou.
Nenhuma resposta.
Ele se movia lentamente, como se cada peça da mobília que encontrava pudesse ser uma armadilha. Um baú abriria suas mandíbulas e o engoliria por inteiro, ou ele cairia através das tábuas do assoalho rangendo em um fosso de espinhos. Havia apenas uma porta aberta, e levava a um pequeno escritório.
Ele pegou uma das cadeiras no canto e esperou como lhe foi dito. Seu pulso tornou-se o bater das asas de um beija-flor libélula. Seu único consolo era que este era um lugar muito bom para matá-lo. Seu cadáver faria bagunça demais.
O som de passos, vindo do teto. O mestre da casa desceu as escadas acima do escritório. A coluna de Kavik se endireitou. Seus lábios se separaram. Ele congelou em um estado inclinado, meio do caminho, pronto para se levantar, mas incapaz de deixar sua cadeira.
Entre sua casa de madeira e sua antiga bancada de trabalho no andar mais baixo de Nuqingaq, Kavik tinha aprendido que era possível, extremamente possível, quando você estava familiarizado com a pessoa, dizer quem estava subindo e descendo um lance de escadas apenas pelo som. Seu pai tinha um thud-thud-thud lento, sempre pegando e ajustando totalmente seu peso antes do próximo passo. O barulho revelador de sua mãe era um swishhh deslizante, já que ela sempre segurava em um corrimão, se disponível. Se não, ela corria sua mão ao longo da parede.
E o rastro de batidas leves que ziguezagueava de um lado da escada para o outro, como se o causador do barulho estivesse retardando sua descida de uma montanha seguindo um caminho de ziguezague, pertencia a uma única pessoa na vida de Kavik. A porta do escritório se abriu e o chefe-chefe da associação entrou.
— Olá, Kavik — disse seu irmão mais velho, Kalyaan.
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