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A Aurora de Yangchen: A Troca

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Nova regra, pensou Kavik. Não viajar por entre a praça, não importa o quão grande seja o desvio que tenha que pegar.

 

Era simplesmente muito arriscado. Desde a saída forçada de Teiin do Santuário Gidu, a praça tinha se tornado um lugar habitual para a reunião das pessoas de Bin-Er discutirem suas queixas. Muitos homens e mulheres se juntavam à multidão a cada dia e seus protestos contra os Shangs eram ouvidos por quarteirões de distância, carregados pelo vento.

 

O gelo estava se acumulando. As águas estavam formando espumas. A hora chegaria para que o centro de Bin-Er desmoronasse em si mesmo e, já que Kavik não sabia quando chegaria, ele simplesmente não ficaria mais lá, nunca. Para evitar o redemoinho, você precisa evitar o barco.

 

Ele conseguiu chegar à casa de chá a tempo. A Amora Dourada, o nome era pouco familiar. Seu interior era escuro e cheio de cantos feitos de meias-paredes e telas. O proprietário parecia estar ocupado no fundo da loja, considerando o barulho de xícaras batendo. Kavik não tirou o capuz e esperou.

 

Qiu apareceu e, para a irritação de Kavik, decidiu sentar-se na mesa atrás dele, para que ficassem de costas um para o outro. Ele supôs que o homem mais velho queria esconder sua conversa, mas sua ação não fazia diferença já que eles eram os únicos clientes na loja.

 

Tanto faz. Depois do seu desastre com o Avatar, Kavik não tinha mais razões para reclamar da competência braçal de outra pessoa.

 

— Seu lesma de repolho — Kavik resmungou — Você sabia de quem era o quarto que me mandou, não é?

 

— Você estava mais seguro do que sempre esteve — disse Qiu. Falar para o nada a sua frente não era nem um pouco suspeito, claro que não! — O que uma nômade do Ar vai fazer, te matar? Pare de se queixar. Você entrou e saiu sem nenhum problema.

 

Kavik refletiu sobre a declaração descaradamente falsa. Parece que ninguém o havia associado ao Avatar. O jantar com seu pessoal havia permanecido em segredo e, fosse por uma lealdade prolongada ou um robusto pagamento de saída, os guardas demitidos não haviam espalhado a notícia em Bin-Er sobre o intruso na Mansão Azul.

 

O que significava que o valor de mercado da carta que ele havia roubado de Yangchen ainda era perfeito, tão importante quanto poderia ser.

 

— Não foi executado de forma perfeita. Eu só consegui pegar um único envelope.

 

Ele ouviu o barulho de Qiu arrumando a postura com entusiasmo e então uma tentativa de manter as aparências.

 

— Pode não ser nada. Você não danificou o selo, né?

 

— Veja você mesmo — Kavik pegou o envelope, levantando a mão um pouco atrás dele.

 

Qiu tateou ao redor cegamente até que seus dedos tocaram no papel e o puxou para longe como uma gaivota da neve com fome lutando por um pedaço de pão caído.

 

Kavik deixou seu agente examinar com cuidado o lado de fora da carta. Por mais triste que fosse, Qiu era a coisa mais próxima que ele tinha de um amigo. Uma vez que o povo do bairro da Tribo da Água havia parado de falar com ele, seu círculo social havia se reduzido aos colegas e capangas que realizavam suas tarefas. Mama Ayunerak não contava.

 

— Chega de enrolação — disse Kavik — Eu escolhi você ao invés do Avatar e olha que ela é bem mais bonita. Me diz o que eu preciso saber.

 

Ele percorreu o dedão por seus dedos. Não queria aumentar o preço de sua resposta, nem um pouco. O preço atual de um faz-tudo era fácil de concordar, mas a briga com seus pais não era.

 

— Certo, então meu contato no escritório de fiscalização de saídas conseguiu ficar um tempo com os registros. Ela não encontrou o nome de Kalyaan na seção dos aprovados, mas ela achou uma descrição. “Homem da Tribo da Água com oito dedos solicitando a saída de Bin-Er”. O destino ainda por decidir, o que é muito raro. Tem que ser ele, não é? Ela diz que a passagem foi atribuída na última vez que você ou qualquer outra pessoa tenha tido notícias dele. — Qiu se ajeitou na cadeira — É como você suspeitava, seu irmão sumiu.

 

O Kavik de doze anos estava nervoso quanto a pisar no solo do novo continente. Embora o clima cinzento fosse um pouco diferente deste lado do desfiladeiro, a jornada através da água havia transformado seus medos em um caroço pesado.

 

— Vamos pular juntos — Kalyaan disse para ele — Se nós pularmos, os espíritos vão nos manter seguros, custe o que custar.

 

Sob suas ordens, a família removeu suas luvas e formou uma corrente. Kavik segurou a mão de seu irmão, seu pulso cabia perfeitamente no espaço em que Kalyaan havia perdido o dedo anelar e o mínimo. Ao mesmo tempo que Kalyaan fazia contagem regressiva, seus pais provocavam de brincadeira seu filho mais novo por ser bobo e seu mais velho por caçoa-lo com essa ideia ruim. O vento atormentava e rachava sua pele à mostra.

 

Kalyaan manteve o foco e piscou para Kavik.

 

— … três… dois… um!

 

Os quatro pularam do umiak[1] em perfeita sintonia e gritaram, balançando bem alto seus braços ainda juntos. As outras famílias que aterrissavam rolaram os olhos e balançaram suas cabeças, mas Kavik se sentiu mais aliviado do que poderia descrever. Ele não tinha sido espetado por flechas ou caído nas britas. O encanto da união havia protegido eles.

 

[1] Umiak é um tipo de barco feito de pele de animais, utilizado pelos povos Inuit e Yupik.

 

As grandes docas de Bin-Er afundavam para o lado onde a água era mais funda. A multidão de operários enchia o navio cargueiro de barriga gorda revestido de placas de madeira e quebravam seu interior com ganchos de ferro e pás. Barris desenrolados como rampas, às vezes caindo na água e criando respingos, mas ninguém parava para pegá-los. Uma certa quantidade de objetos pessoais perdidos eram acidentes aceitáveis.

 

Isso tudo lembrava Kavik de um cachorro-urso-polar comendo carcaças, pedaços de carne já consumidos voando pela neve, e isso o fez estremecer. Mas seu comboio do Norte tinha feito a viagem sem confusões dentro dos navios, com uma brisa leve ajudando-os a chegar à praia com segurança, como qualquer outra mudança de acampamento.

 

Talvez esse novo lugar não seja tão ruim. Ele pensou enquanto um homem de uniforme verde pesado aproximou-se para cumprimentá-los.

 


 

Desde cedo com suas funções como atendente júnior no Nuqingaq, Kavik estava maravilhado com o quão estável os salários eram. Você sabia exatamente quantos trocados você receberia a cada semana. E mesmo não podendo aproveitar um prêmio do nível de uma baleia-morsa ou uma rede voltando cheia de peixes choco-perca, você não fica sem nada por muito tempo.

 

Como ele tinha sorte, pensava enquanto esfregava seus olhos cansados em sua mesa. Muitos de seus companheiros de trabalho vieram a Bin-Er sozinhos, deixando mulheres, maridos, parentes e filhos para trás, mas Kavik tinha e sempre estaria com as pessoas que ele mais amava debaixo do mesmo teto.

 

Kalyaan ficou em Nuqingaq por menos de seis meses.

 

Ele não havia mostrado nenhum sinal de insatisfação. Ele só não apareceu no seu turno uma manhã e de novo no dia seguinte. Não teve uma terceira vez porque ele foi demitido e barrado de entrar na loja.

 

O silêncio tumultuoso que seguiu Kalyaan perdendo seu emprego e a forma que a família se tornou excluída dentro de seu próprio local de trabalho ensinou muito a Kavik sobre como as coisas realmente funcionavam em Bin-Er. Ao bisbilhotar as trocas de insultos entre seus colegas de trabalho, ele descobriu que o verdadeiro recurso de Nuqingaq e Parceiros não era sua baixa taxa de erro, mas sim seu envolvimento altamente limitado no grande redemoinho de forças da cidade.

 

Por seus empregados se manterem na sua, terem pouco contato com a Nação do Fogo e o Reino da Terra e por seu negócio não estar no bolso de nenhum shang em particular, a princípio eles seriam deixados de lado. E seria fácil para eles conseguirem passagens para sair de Bin-Er quando quisessem. Mas Kalyaan subitamente perambulando por aí sozinho a lugares desconhecidos ameaçava esse privilégio, supondo que ele realmente existisse.

 

Para os descuidados, Bin-Er era uma barragem pesqueira que os atraía e depois não os deixava sair. Nenhum dos contadores, incluindo Kavik, queria viver na cidade para sempre. Colocar o grupo em risco por conta de sua imprudência não refletia bem nos polos. Você cuidava da sua família.

 

Kalyaan ainda visitava sua casa de tarde, mas sempre desviava das perguntas sobre o que ele estava fazendo. Ele havia encontrado outro trabalho, dizia a Kavik. Tudo estava bem.

 

Seja qual fosse o trabalho, ele pagava mais do que ser contador por ordem de magnitude. Em Nuqingaq, Kavik ouviu as fofocas sobre seu irmão. Eles usavam palavras como capanga, lacaio, espião.

 

Kalyaan passou a ir menos e menos para casa. E tudo bem. Jovens homens e mulheres saíam da casa de seus pais, isso era normal. Claro, geralmente saíam casados, mas Kalyaan era completamente discreto sobre sua vida, como era sobre seu trabalho.

Ele também presenteou sua família com uma casa nova. Não forçadamente, mas vigorosamente. Era melhor viver perto do distrito internacional, ele disse. Claro que a estrutura de madeira era mais difícil de manter limpa e aquecida, mas era melhor. Porque? Nem Kavik e nem seus pais sabiam. Eles ouviram Kalyaan e se mudaram com sua lâmpada de óleo e o resto de suas coisas. Ele parecia estar muito confiante. A mudança de residência não passou despercebida por seus vizinhos.

 

Então, uma manhã, aconteceu. Todos os contadores, atendentes e assistentes foram chamados ao centro da loja. Alguém com conhecimento próximo da lista de clientes e o tempo de renovação de contratos havia roubado seus clientes mais valiosos, explicou o chefe. A maioria das pessoas ali perderam seus empregos.

 

Kavik observou enquanto seus vizinhos eram colocados para fora de casa. Sua primeira lição real em como um contrato, uma projeção numeral, palavras arcanas oscilando sem vestígios pelo mundo físico, poderia levar alguém a perder seus bens pessoais. Ele e seu pai sobreviveram sem um arranhão. Não parecia ter nenhuma lógica por trás dessa decisão.

 

O bairro da Tribo da Água se manifestou em volta dos membros que não tiveram sorte. Foi a forma que acharam para apoiar um ao outro. Mas não havia dúvidas de quem era a culpa desse incidente, porque Kalyaan não voltou mais para casa depois disso.

 

Kavik e seus pais esperaram por ele enquanto sofriam sua dívida. Nos polos, aqueles que cometem ofensas imperdoáveis contra sua comunidade podem acordar um dia e descobrir que o acampamento se mudou sem eles. Não havia nenhum lugar para se fugir em Bin-Er, com exceção dos colegas de Kavik, que saiam quando ele sentava na bancada, ignorando-o quando tentava falar.

 

Haveria algum ponto de ruptura? Um momento específico em que ele teria engolido muito de Bin-Er e seu corpo reagiria para eliminá-lo? Ele não conseguia se lembrar. Kavik conseguia lembrar o quão brilhante era a solução óbvia para seus problemas gravados em sua mente, enquanto colocava sua parka[2] e se tornava a segunda pessoa a sair voluntariamente de Nuqingaq.

 

[2] Parka: casaco impermeável bem quente utilizado por moradores de lugares frios.

 

A maioria das pedreiras recompensava a paciência, mas havia algumas exceções. Você não sai andando em uma direção aleatória quando persegue um rebanho de renas, nem senta e congela enquanto espera eles voltarem. Você segue seus rastros o mais próximo que puder. Para achar seu irmão, ele teria que refazer todos os seus passos.

 

Kavik realizava tarefas da mesma forma que Kalyaan fazia. Ele jogava o jogo e caçava as pistas até que conseguisse alcançar a antiga criança dourada de Long Stretch. E então ele o arrastaria de volta para casa, chutando e gritando se necessário, para que sua família possa sair dessa cidade abandonada pelos espíritos da mesma forma que entraram.

 

Juntos.

 

O começo de sua busca. As pancadas pesadas para descobrir o jogo de informações foram brilhantes e encantadoras por um tempo, tanto quanto procurar entre atas de reuniões roubadas e receber pancadas em becos escuros poderia ser.

 

Mas aquela promessa havia sido feita há muito tempo atrás. Sua missão auto imposta tinha morrido, e Qiu era, o menos improvável, carregador do caixão. Ele não sabia o que fazer.

 

Presumindo que Qiu estava falando a verdade, a ordem cronológica fazia sentido. Explicaria porque Kavik estava tendo tanto problema em achar um homem em uma cidade em que ninguém podia sair. E isso significava que seu irmão mais velho, sem nem avisar ou escrever uma carta, havia abandonado sua família e os deixado para trás de vez.

 

Kavik se sentiu muito pequeno e solitário, sentado de frente para ninguém. Ele limpou sua garganta. E limpou sua garganta de novo.

 

— Ei — Qiu disse em um pequeno instante de simpatia — Me desculpa. Sei que as famílias da Tribo da Água são bem próximas.

 

— É, eu… — Ele queria mudar de assunto — O que você vai fazer com a carta?

 


 

— O mesmo que Kalyaan. Fugir daqui — Qiu não estava se sentindo com pena nem tão sensível, então evitou tocar na ferida aberta. Ele beijou o papel — Eu sei como posso entrar em contato com agentes que representam compradores estrangeiros. Vão me levar a eles. Estou mirando em Taku. Sair de perto do gelo de uma vez por todas.

 

Qiu não tinha ninguém para levar com ele. Kavik empurrou esse sentimento sem forma para longe dele, antes que tivesse a chance de se tornar pena ou inveja.

 

Qiu levantou e ajeitou seu casaco pesado enquanto saía. Ele parou na porta, dando a Kavik uma visão de sua alegria indisfarçada em seu rosto redondo com marcas vermelhas. Ele estava livre.

 

— Dê a Kalyaan um oi para mim, caso você o encontre — ele disse e desapareceu na rua.

 

E com isso, as chances de Kavik de reunir sua família se derreteram na sua frente. Ele desceu em sua cadeira e pressionou seu crânio contra a parede da cabine até que começasse a doer.

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Capítulo 14