Kavik esperou por ela atrás do hospital, no círculo de grama pisoteada.
— Todas essas pessoas são de Bin-Er? — Ele perguntou a Yangchen quando ela aterrissou.
Ele parecia calmo de uma forma forçada.
— A maioria é — Yangchen disse — Sair escondido da cidade sem permissão normalmente significa renunciar a maioria dos mantimentos ou o conhecimento certo para que se possa atravessar de forma segura para o Templo do Ar. Nós temos que patrulhar a área em volta nos nossos bisões para encontrar pessoas perdidas ou em apuros. Se fizer a curva errada nessas montanhas…
— O que vai acontecer? — Ele perguntou, apontando seu queixo para dentro.
— O Abade Sonam vai mandar outra equipe para procurar pela criança.
Talvez essa seja a melhor ideia. Eles tinham que ter esperança. Ela percebeu a postura tensa e inquieta de Kavik, o peso que ele sustentava na ponta dos pés, como se existisse algum oponente que ele pudesse lutar em um combate corpo a corpo pelo destino do menino perdido. Se fosse fácil assim.
— Você não pode deixar isso te abalar — ela disse, por força do hábito. Palavras que ela ouviu por mais de uma vida — Você salvou a vida de alguém. Precisa lembrar das vitórias e deixar as derrotas para trás. Se não você não vai conseguir dormir nunca mais.
Ele encarou seus pés, como se uma explicação melhor estivesse enterrada na terra.
— Vem — ela disse, empurrando seu braço — Eu queria te mostrar o Templo do Ar. Você precisa de algumas histórias para contar aos seus pais.
— Eu pensei que ia ficar aqui embaixo. Eu posso entrar no espaço sagrado?
— Você é o hóspede do Avatar. Pode entrar em vários lugares. Chega um pouco para trás.
Yangchen se distanciou antes de enrolar a língua, fazer um bico e soprar um assobio estridente que começou baixo e foi subindo de tom até o ponto em que nenhum ser humano conseguiria ouvir. Uma sombra enorme cresceu em volta dos pés de Kavik. Ele pulou cautelosamente para fora do caminho para se prevenir caso o barulho tivesse movido uma bola de neve ou uma pedra acima dele.
Não veio nenhum deslizamento. O bisão voador de Yangchen bateu no chão, fazendo a terra tremer por dois metros abaixo. Nujian jogou sua juba encaracolada para trás e se deliciou com a luz dourada do sol que estava se pondo, com uma pata da frente levantada.
— Deixe de ser presunçoso — Yangchen disse para seu companheiro animal. Nujian amava essas chegadas e admirações, se divertia em ser o bisão do Avatar em meio aos outros bisões. Às vezes era inconveniente.
— Uarrrgh — respondeu o bisão. Kavik parou seu braço, suas mãos já estavam esticando para tocar no pelo macio.
— Posso?
Yangchen consentiu. Ele afagou o pelo branco e brilhante do bisão e conseguiu um resmungo apreciativo em resposta.
— Isso é um bom sinal.
— Você deu o nome dele de “flecha”? Meio sem imaginação, não acha?
— Eu tinha oito anos! Não enche mais o saco! — Com um bufar ela usou um pequeno tornado para se erguer até as costas de seu bisão, fazendo um plop enquanto sua túnica assentava em volta de si.
— Você não vai subir não?
Relutantemente, Kavik parou de acariciar e pulou para a sela atrás dela. A plataforma ampla não possuía nenhum lugar designado para sentar. Ele agarrou na ponta e olhou para a beira, onde o pelo do bisão estava trançado entre a estrutura da sela.
— Como ele sabe quando voar ao invés de andar? Você precisava fazer algo com as rédeas ou dizer alguma coisaaaagh!
Nujian se atirou no ar tão rápido como seu homônimo. Yangchen havia aprendido a se comunicar com seu companheiro por meio de seus calcanhares, um olhar, uma mudança de tom. Kavik caiu para trás, se ajeitou e começou a gritar para a babaca que estava conduzindo. Mas a tontura o alcançou rápido demais.
Yangchen queria espantar o desânimo dele. Funcionou. O vento na cara deles era incisivo e frio. O barulho que saiu da garganta dele era de pura euforia.
Eles estavam voando.
Yangchen não conseguiu evitar seu sorriso, observando Kavik gritar de alegria sem filtros. Por mais bobo que fosse, ela não estava zombando antes. Passar pelo teste de Nujian tinha um peso. Seu bisão companheiro instintivamente desgostava de muitos dos membros de sua equipe que na verdade eram espiões, Sidao em particular. Mas esse menino tinha um coração feito para voar.
— Faça um loop — ele gritou.
Talvez bem feito demais.
— Se você vai viajar comigo, precisa aprender como guiar Nujian também. E isso significa saber o que você pode e o que não pode fazer no ar. Os Bisões voam sem suporte, humanos não. Mesmo sendo um dominador do ar.
A mensagem importante foi perdida
— Eu posso pegar as rédeas?!
Yangchen revirou os olhos e puxou seu bisão para uma curva fechada sobre as paredes ornamentadas do Templo do Ar do Norte. Quase nenhuma parte do nível natural do solo existia dentro das fronteiras de escadas e rampas rodopiantes e um enorme alívio de suas torres contra o céu faziam com que a sensação de isolamento fosse maior. O templo do Sul possuía um terreno cárstico como vizinho e os templos Leste e Oeste foram construídos como ilhas conectadas. Mas o Norte permanecia solitário.
[1] Terreno cárstico: região que possui um processo de dissolução de rochas como calcários, dolomitos, cavernas, etc.
Ela deixou Kavik observar lá de cima a quadra de treinamento com seu padrão de círculo de caminhada, os claustros ao ar livre até voaram por entre a trave fixada do polo de bisões. Nujian pousou no terraço, bem no meio da grande faixa azul central.
— Isso foi incrível! — Kavik berrou, sua voz ainda tentando compensar o vento forte — Desculpe. Isso foi incrível. Voar é sempre assim tão divertido?
Ele estava tão triste em Bin-Er, mas agora sua felicidade estava contagiante. Yangchen se sentiu aquecida, como se estivesse sendo atingida por um raio de sol. Ela gostava de coisas que a faziam se sentir aquecida.
— Eu ainda não cansei de voar.
Kavik desmontou primeiro e a ajudou a descer. Ela pulou por cima de sua cabeça e pousou atrás dele.
— Verdade — Ele murmurou — Dominadora de ar.
— Pontos pelo cavalheirismo. — Nujian saiu com uma despedida apressada de vento para procurar comida na parte de baixo das árvores. Yangchen conduziu Kavik para o templo, alertando-o a não pisar nos pequenos caranguejos eremitas que estavam no caminho.
Não havia nenhuma porta bloqueando a passagem ao grande salão. Qualquer um poderia entrar, encarando o bisão assustador esculpido na parede do fundo. Yangchen achava que parecia mais um dragão espirrando do que um bisão, mas talvez quando ele foi criado, há mil anos atrás, os animais companheiros de seu povo eram menos sociáveis.
Ela preferia obras de artes nas paredes, pinturas de monges contra as nuvens feitas em cores destinadas a desaparecer ao longo do tempo para ensinar uma lição sobre impermanência. Preservá-las exigia a transmissão das habilidades de geração para geração, um esforço constante através dos séculos. O exercício era inútil no fim das contas, mas mesmo assim digno de prosseguir. Como a maioria das coisas na vida.
Kavik rodou ao segui-la, tentando assimilar as estátuas dos grandes anciões nos nichos.
— Tantos — ele disse — Vão colocar uma sua algum dia?
— Depois que eu morrer os templos são obrigados pela tradição Avatar. — Yangchen estremeceu — Eu espero que a minha seja menor que estas. Não preciso de todo mundo encarando minha cabeça gigante pela eternidade.
Eles entraram nos claustros em forma de anel. Um grupo de acólitas jovens, do Templo do Leste, que estavam visitando, passaram por eles e fizeram uma reverência solene para Yangchen enquanto ela lhes deu a benção. Algumas delas levantaram as sobrancelhas para Kavik, mas não falaram nada. Era de conhecimento público que o Avatar precisava conduzir assuntos mundanos com a ajuda de pessoas de outras nações.
O insulto veio só depois deles terminarem de se cruzar.
— Para que lado os ocidentais vão? — gritou a anciã líder. Yangchen virou para ver ela fazer um gesto com três dedos em direção ao chão. O resto das meninas responderam em uníssono.
— ABAIXO, ABAIXO, ABAIXO!
Por conta de leis firmes como qualquer pessoa de seu povo, Yangchen era obrigada a responder. Ela colocou as mãos em volta de sua boca.
— Vocês são sete e dez da minha era! Lado Leste, lado menor!
— A lacuna está fechando rapidamente Avatar! — As acólitas orientais se afastaram com um sorriso forçado e os braços abertos de forma zombeteira, voltando somente à formação adequada quando alcançaram o limite do grande salão.
Kavik estava estupefato.
— Rivalidade de bola de ar. — Yangchen explicou.
Ela o levou para as escadas na direção de uma das torres. Eles ultrapassaram uma linha de monges jovens terminando suas tarefas, carregando baldes de água com sabão e batendo seus joelhos contra as banheiras de madeira. Kavik olhou em volta da formação rochosa. Talvez ele tenha sentido um ligeiro puxão de seu elemento dentro dela. Yangchen conseguia sentir.
— Sabe — ele disse — Se você fizesse alguns buracos e derrubasse algumas dessas paredes velhas, poderiam conseguir um fluxo que venha de uma elevação mais alta.
A cidade dentro dele que estava falando. Yangchen balançou sua cabeça.
— Pessoas deveriam saber o peso da água. O propósito da vida não é a conveniência.
Mesmo assim, ela virou e utilizou sua dominação para tirar a água dos baldes levantando uma bolha no ar. Os meninos aplaudiram enquanto seguiam ela e Kavik, temporariamente livres do peso.
— Só dessa vez! — ela disse a eles — Não contem para o Abade!
Depois de chegar ao topo das escadas, eles deixaram o grupo para trás e entraram na torre. Contudo uma nova série de escadas esperava por eles lá dentro, uma espiral que subia mais e mais ao longo da parede. Para não ferir o orgulho dele, ela não acelerou o ritmo. O ar era rarefeito nas montanhas e muitas pessoas não estavam acostumadas com o conceito do que é plano para os dominadores do ar. Subir por muito tempo, descer por mais um tempo e terminar com você na elevação que começou. Não é um grande problema.
O topo da torre era um pequeno andar de meditação, aberto para todos os lados. No lado oeste, o sol se pondo pintava a névoa da montanha de violeta suave. Os penhascos que cercavam o Templo do Ar do Norte eram tão acentuados que a visão das janelas faz você pensar que está flutuando no topo de nada, percorrendo pelo céu.
— Deslumbrante — Kavik disse com um suspiro.
Yangchen andou ao redor dele para que não bloqueasse nenhuma luz.
— Eu preciso presenciar pelo menos um pôr do sol toda vez que visito o Templo do Norte. Esse era o lugar favorito da… — Ela se forçou a falar. Não havia motivo para se esconder das lembranças de Jetsun. — Minha irmã. Ela que me mostrou aqui.
— Você tem uma irmã! — Kavik repetiu, ainda encantado com o reluzir laranja a distância
Yangchen franziu os lábios.
— Isso é estranho?
— Não. Desculpe. Essa é a parte normal. — Ele virou, o sol batendo contra a maçã do rosto. — Tem uma grande diferença entre… quer dizer…
Ele moveu as mãos para começar de novo.
— Você aqui em cima é exatamente como eu imaginei o Avatar. Heroica, inspiradora. Você lá embaixo é uma coisa totalmente diferente. É difícil de entender.
Ah. É mesmo. A velha pergunta. “Porquê você é assim?” O contexto era diferente do habitual. No passado ele vinha da boca dos anciãos, enquanto eles tinham dó e temiam por ela.
— Você já ouviu falar de um lugar chamado Tienhaishi? — ela perguntou. — Costumava ser uma cidade com ótima arte e cultura. Os melhores do mundo, de algumas perspectivas.
— Onde você lutou contra o grande espírito. — Kavik disse — Eu sei o básico da história. É difícil de acreditar. Eu estou olhando para a mesma pessoa que lutou contra um gigante do mar. — Ele pausou. — Mas com o tempo eu ouvi que era um furacão que destruiu montanhas. Não me entenda mal. Eu continuaria muito impressionado se você conseguisse parar uma tempestade.
Yangchen achava exaustivo que não importava o que acontecesse, não importava quantas pessoas testemunharam o acontecimento, alguém bateria o pé e afirmaria que os eventos aconteceram de forma diferente. Tentativas mesquinhas de se aproveitar de uma história que não era deles.
— Para sua informação, era um espírito. Eu agi como “eu-aqui-em-cima”. Poderosa. Magnífica.
Ela colocou a mão em punho com a palma virada para o rosto e então abriu a mão, a forma mais sucinta que ela conseguiu resumir seu Estado Avatar. Kavik provavelmente não entendeu exatamente o que ela quis dizer com o gesto, mas ele pareceu assimilar o suficiente.
— Eu fiz um acordo com o gigante. — Ela disse. — Ele deixaria de lado suas agressões e os colonizadores deixariam aquela parte do litoral. Atualmente meu povo está cuidando da terra onde Tienhaishi ficava e preservando os rituais adequados como parte do acordo. Até agora está funcionando. Se tem alguma coisa que as quatro nações respeitam são os locais sagrados dos Nômades do Ar.
Kavik assentiu. Um trabalho bem feito pelo Avatar. E era, realmente era. O problema eram as consequências, as lacunas, a fumaça depois do fogo.
— A briga deixou a cidade em ruínas. — Yangchen continuou. — Casas destruídas. Os moradores não tinham para onde ir. Eu fiquei com eles, procurando por novos lugares para eles morarem. Eu não achei que fosse ser fácil, mas achei que teríamos algum progresso. “Tenham fé”. Foi o que falei para as pessoas de Tienhaishi.
O sol virou uma tira.
— Nós fomos de cidade em cidade, portas batendo em nossos rostos, até que eu não consegui mais fazer com que eles abrissem para mim. Homens do prefeito sempre passavam, armados, nos dizendo para continuar andando. Nós dormimos em campos, vivemos de esmola. Meus colegas, acólitas e monges, fizeram entregas por nós, implorando em todo canto. — Ela lembrava de mandar Nunjian embora, com medo dele comer muito dos frutos locais. Sementes coletadas, cascas de árvores comestíveis, e coisas do tipo.
— Quando começamos a perder pessoas por conta de doenças, eu fiz uma promessa. — Yangchen disse. — Eu iria persuadir, lisonjear, choramingar, usar qualquer tática à minha disposição para fazer o que tinha que ser feito. Tudo ficou mais fácil quando eu comecei a entrar no jogo, utilizando minhas influências nas situações necessárias.
Ela não precisava contar detalhes, mas eles saíram dela como água.
— Uma vez eu consegui trabalho para a maioria dos artesãos de Tienhaishi, mentindo para dois nobres que competiam sobre o quanto cada um queria ser o chefe dos trabalhadores mais competentes. — Ela disse. — Tive que forjar algumas cartas. Foi divertido. Outra vez eu assustei tanto o marido espiritualmente inclinado de uma governadora que ele ameaçou se separar dela caso ela não fosse mais bondosa e abrisse mais territórios.
Ela esperou para ver se Kavik ficaria revoltado, se tinha destruído sua imagem de Avatar para ele. Então ela se lembrou que já havia feito isso lá em Bin-Er.
— Eventualmente as pessoas de Tienhaishi foram absorvidas pelo continente. — Ela falou. — Achamos terra cultivável para alguns deles trabalharem, outros procuraram família em Ba Sing Se. Tenho certeza que alguns deles estão nas cidades shang agora, precisando de ajuda. Você consegue imaginar? O Avatar falhando miseravelmente, duas vezes em toda sua existência.
Yangchen fez caretas para a sombra da torre até que tivesse certeza que não fosse perder sua compostura. A luz sobre as montanhas estava calma e fraca. Um palco apropriado para seu “eu-lá-debaixo”.
— Eu aprendi que não posso forçar as pessoas a fazer a coisa certa, mas eu posso… conduzi-los. Posso mostrar verdades convenientemente personalizadas que os ajudam a ver de uma perspectiva mais iluminada. O termo que os dominadores do ar utilizam é “ensino modelado”.
Ela estava trucidando a definição para poder se sentir melhor. Aprender as técnicas de espionagem, trapaça e falsidade nunca foi um empecilho. Avatares eram prodígios, de certo modo. Estudantes ligeiros quando devidamente motivados. Yangchen tinha acesso a tantas vidas passadas. Qual delas não seria uma farsante treinada até o fim de suas vidas? August Szeto era, sozinho, uma biblioteca de tramas.
Estava silencioso. “Ele está me julgando” pensou Yangchen.
— O que sua irmã pensa disso? — Kavik perguntou.
Ela foi pega de surpresa pela pergunta.
— Que?
— O que sua irmã mais velha pensa sobre como você lida com as coisas como Avatar? — Ele coçou a cabeça. — Eu supus que ela é mais velha, por algum motivo.
— Eu… Eu não sei como ela reagiria à forma que estou agindo agora. — Para Yangchen sua vida antes e depois de Jetsun eram pedaços que não se entrelaçaram, não tinha como se associarem. — Ela morreu há um tempo atrás, antes que eu começasse meu trabalho. Eu a admirava mais que qualquer outra no mundo.
Um Avatar Yangchen com Jetsun ao seu lado poderia ter sido uma líder bem diferente.
— Tenho certeza que ela me diria para desacelerar. Ser menos precipitada. Foque no longo prazo. Como você sabia que ela era mais velha?
Kavik cruzou os braços bem apertado. Ele poderia estar segurando sua língua ou então se forçando a falar.
— Eu tive alguém na minha vida assim também. — Ele disse. — Outro mensageiro que tentei imitar. Mais velho, mais esperto. Sinto que ainda olho para trás toda vez que faço uma decisão. Esperando para ver se ele está me observando.
Então eles tinham um ponto fraco em comum.
— É porque eles nunca nos deixariam fazer uma escolha errada. — Yangchen falou. Sem os acenos, sem os balanços de cabeça, sem o peso e a presença deles, você fica desequilibrado. Sempre duvidoso do seu próximo passo. — Esse seu amigo já se foi?
— Há um tempo. — Kavik falou. — Ele não tinha muitos motivos para ficar em Bin-Er então ele pulou fora assim que conseguiu aprovação para sair da cidade.
Os dois devem ter sido muito próximos para o tanto de amargura que estava presente no seu rosto. Kavik passou a mão em seu peito com os braços ainda cruzados, como se estivesse tentando acalmar a si mesmo.
— Acho que você e eu estamos presos a tentar resolver as coisas sozinhos, não é? — Ele disse. — Ninguém para nos dizer qual caminho seguir.
— É mesmo. — Yangchen estava feliz de encontrar alguém que entendia. Era um pensamento ingrato, mas toda a sabedoria que ela possuía de suas vidas passadas não faziam jus a Jetsun segurando firme sua mão, empurrando-a gentilmente na direção certa.
— Está reconsiderando sua decisão de se juntar a mim?
— Não. Não se vamos impedir situações como a que aconteceu no hospital.
Sua intensidade a surpreendeu.
— Se Bin-Er cuidasse melhor de seu povo, aquela mulher não teria arriscado caminhar pelas montanhas — Kavik falou, passando sua língua pelos dentes, mostrando sua frustração. — Ela não teria sido separada de seu filho.
“E nós teríamos vencido”. Yangchen percebeu que seu novo colega via a série de acontecimentos que vinham da ganância, negligência e sofrimento. Acima de tudo, ele estava disposto a ver. E sua reação era de grande insatisfação.
Ótimo.
— Quer saber de uma coisa? — Ela disse.
— O que?
— Acho que minha confiança em você aumenta cada vez que conversamos.
Do lado de fora, os vagalumes começaram sua dança do entardecer. No exterior do Templo haviam vários pontinhos brilhosos. O sol baixava mais cedo nessa época do ano, o que diminuía o número de horas que as equipes de resgate poderiam percorrer pelas montanhas para procurar.
Um barulho endoidecido de asas batendo encheu o ar, convocado pela lanterna da torre, que era uma das fontes de iluminação no céu. Kavik ouviu e ficou em alerta, mas ele não sabia de qual direção estava vindo.
— Que barulho é esse? — Ele disse logo antes de um monte branco confuso colidir com seu rosto. Outro bateu na sua nuca.
O caos se instalou. Yangchen não conseguia ver quem estava gritando mais, o homem ou os lêmures voadores.
— Pik! Pak! — Ela gritou. — Parem com isso!
Kavik agitou seus braços enquanto Pik segurava obstinadamente seu cabelo.
— Tira eles de mim!
— Para de entrar em pânico, eles são meus amigos! Eu só os deixei sozinhos por muito tempo e eles estão chateados! Fique calmo que eles ficarão calmos!
Seu conselho foi ignorado. Ela teve de desenganchar as patas de Pak, uma por uma, das orelhas de Kavik. Ele conseguiu pegar Pik com seu braço, jogou o animal lutando pela janela, se curvou e ficou cuspindo e limpando sua língua com os dedos.
— Pfft! Tem pelo na minha boca! Pfft!
Ele descobriu, logo de primeira, a origem dos nomes Pik e Pak. Eles sempre pulavam em estranhos que chegavam perto dela e também soltavam pelos o tempo todo. Ela não podia comer nada perto deles sem que caísse em seu prato.
— Se eles fizerem isso de novo, repita o que você fez. — Ela disse. — Jogue eles pro ar que eles vão planar para longe. — Como demonstração, ela deixou Pak correr por seu braço e pular em direção a escuridão.
— Essas coisas conseguem voar?!
Ela olhou para Kavik.
— Você jogou meu lêmure para fora da torre sem saber se conseguiria sobreviver à queda?
— Eu me defendi de um monstro rato horroroso que me atacou, você quer dizer!
E pensar que eles quase tiveram um momento.
— Está ficando frio. — Yangchen disse. — Vou te mostrar o resto do templo. Vamos torcer para você não molhar as calças com os gato-mariposas
— Eu te odeio.
— Ouvi dizer.
Kavik teve dificuldade para dormir. O ar rarefeito o impediu de relaxar completamente dentro de sua colcha no quarto de hóspedes. E, durante o tour no fim da tarde, algo muito irritante deixou ele completamente irritado.
Ele sentiu uma irritação no estômago quando viu os monges, que haviam terminado seus estudos e meditações, conversando a luz de vela ou sentados nos degraus do terraço sem se preocupar com nada. E de novo, quando ele foi convidado a participar do lanche da tarde e lhe mostraram como misturar manteiga no seu mingau de cevada.
Essa sensação foi nomeada no final do jantar. Inveja.
Kavik sentia inveja dos dominadores do ar, tão à vontade em seu grande templo. Ele presumiu que qualquer lugar fosse casa para eles, sendo nômades, mas cercado de pessoas felizes com seu elemento, sua saudade do Norte ficou esmagadora. Ele cometeu o erro de ensinar para os monges mais novos o jogo de puxar o espeto e teve de ir se deitar mais cedo, antes que começasse a chorar ao vê-los jogar.
Uma lufada entrou pela pequena janela do seu quarto. Ele levantou e apoiou os cotovelos no parapeito, observando as montanhas. Se ele não tomasse cuidado, poderia cair e sair rolando para a borda do mundo.
Seus olhos pararam em uma figura solitária de pé na coluna mais alta do que era, pelo que lhe foi explicado, o campo de bola de ar. Mesmo distante, ele sabia que era o Avatar. Ela estava com uma roupa leve e ficou na ponta dos pés para sentir o vento.
Talvez ela tenha levado os insultos das Orientais muito a sério e estava tentando obter mais prática. Kavik observou enquanto ela trilhou seus dedos em uma corrente invisível e caiu do pilar para frente. Ele só se tocou que ela não tinha seu planador, nem seu bisão quando ela desapareceu de sua visão.
— Ei! — Ele gritou, mesmo sabendo que sua voz não chegaria até ela. — Não!
Ele não precisava se preocupar. Yangchen se lançou no ar planando como uma folha seca, sem direção. Ela alcançou o auge de sua ascensão e bateu suas mãos contra o chão.
Com a força de sua dominação de ar, Yangchen se lançou para cima. Sua trajetória deu uma guinada aleatória para um lado, e de novo, depois de voltar para o outro lado. Não voava, era um giro desordenado se rendendo ao vento. O Avatar havia abdicado do controle. Ela dançava no vazio.
Não. Kavik pensou. Não era uma dança.
Se ele fosse um espectador qualquer, focando somente na beleza de seus movimentos, poderia supor que ela estava dançando. Se divertindo. Mas Kavik tinha conhecido mais de uma Yangchen. Essa versão esmagava o chão com rajadas de ar, açoitando com tanta pressão que ela era levada de volta ao céu.
Ele conseguia sentir sua raiva lá do outro lado do templo, atenuada pela distância como uma brisa distante. Seu elemento não deixaria nenhum rastro de suas frustrações pela manhã. Você tem que deixar as derrotas para trás. Kavik sabia que Yangchen não havia seguido seu próprio conselho e ido adiante em relação a criança nas montanhas. Ela não havia deixado nada para trás.
Tirando suas habilidades e poderes de Avatar, os perigos de ficar suspenso no ar sem auxílio continuavam sendo muito reais. Kavik esperou até que ela estivesse esgotada e voltasse para o chão segura. Ele a observou voltar para os claustros e certificou-se que ela ficou antes que deitasse em sua cama novamente.
O sono veio mais facilmente para ele depois disso.
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