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Cidade dos Ecos: Capítulo Quatro

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— O que você tá fazendo aqui? — pergunto, tentando conter um bocejo. O rosto da Susu tá animado demais pra essa hora da noite.

— Trouxe uma surpresa pra você. — Ela ergue uma sacola e já vai andando, sem nem olhar pra ver se tô seguindo. Pego uma capa e coloco sobre os ombros antes de fechar a porta atrás de mim.

Susu sobe pela escada até o telhado do meu prédio. A estrutura é tão velha e bamba que mal deve aguentar o peso de uma pessoa — e eu não tô disposta a testar isso no meio da madrugada. Deixo Susu ir primeiro e subo depois. Com os braços abertos pra equilibrar, atravessamos o telhado e escorregamos até a beirada. Daqui, é só um pulinho pro prédio ao lado. Neste pedaço do Anel Inferior, os prédios são tão colados que dá pra cruzar o distrito inteiro sem encostar no chão — embora eu nunca tenha tentado.

A gente se acomoda numa parte curva do telhado, de onde dá pra ver o céu. A lua é só um risquinho, um fio prateado lá no alto. Mesmo tão tarde, a cidade ainda tá acordada, com muitas janelas acesas. Ao longe, o monotrilho passa roncando nos trilhos — provavelmente um dos últimos do dia.

O vento sopra, trazendo um friozinho. Susu espirra, e eu ergo um canto da capa pra ela se encolher ao meu lado.

— Isso vai ajudar — diz, entregando um dos pacotinhos de papel. Tá quentinho. Abro e sinto o cheiro apimentado de repolho dentro de um pão branco e fofo.

— Peguei esses bem antes do Young Crow fechar — fala, com a boca já cheia. O Young Crow é o vendedor de pãezinhos de repolho da madrugada. O carrinho dele vive envolto em vapor quando ele levanta a tampa dos cestos. Ele assumiu o negócio do pai, Old Crow, no ano passado, junto com o marido. A gente nunca diria isso pra ele, mas… os pães do Young Crow são melhores. Menos gordurosos e mais leves.

Dou uma mordida e queimo a língua, mas não dá pra resistir ao caldo delicioso escorrendo. Não tem nada mais reconfortante do que pão quentinho em noite fria. Pelo sorriso da Susu, sei que ela tá pensando a mesma coisa.

— Aqui, trouxe uma caixinha de refugo também — diz ela, tirando outra caixinha um pouco amassada. Abro e vejo um dos meus favoritos: rolinhos de foca-tigre, um doce da Padaria Wen com recheio cremoso, moldado como as focas listradinhas.

— Fizemos outro lote ontem à noite por causa de um pedido de última hora — reclama Susu, terminando o pão. — Mamãe nunca pensa no cansaço da Vovó. Aceita tudo.

— Bom… tá tudo mais caro ultimamente — digo com cuidado. A gente não fala sobre o pai dela, que passa a maior parte das noites no distrito de diversões, gastando e bebendo, enquanto a família toda trabalha feito louca pra sobreviver.

— Falando em gosto caro… — Susu abaixa a voz num sussurro conspiratório, mesmo sem ninguém por perto. — Ouviu o que a Mina contou da casa da Lady Hao? O Avatar está na cidade!

— O Avatar? — repito. Quase não se fala nele aqui. Lá em Daying, o Avatar é sagrado, a ligação entre nosso mundo e o Mundo Espiritual. Como os espíritos ainda aparecem nas árvores antigas perto da cidade, o povo acredita que o Avatar ainda pode restaurar a paz entre as Quatro Nações.

Aqui, em Ba Sing Se, o pessoal se preocupa mais com o dia a dia: com os rostos que veem, os boatos das famílias do Anel Superior ou possíveis batidas da guarda.

Quando os boatos sobre o Avatar começaram no começo do ano, eu nem dei atenção. Sempre aparecem rumores assim. Mesmo que ele tivesse sobrevivido ao massacre dos Nômades do Ar, parecia que tinha desistido de se envolver com os problemas do mundo.

— Disseram que deram uma casa pra ele perto da mansão da Lady Hao, com um grupo de amigos. Ele é jovem! Parece um garoto! — Susu tá radiante. O orgulho da família dela é que os bisavós apertaram a mão do Avatar Roku quando ele passou por Ba Sing Se em visita oficial.

— Ele é jovem? Que estranho — comento, pensando no tempo que passou desde então, mas Susu nem me escuta.

— Será que ele vai visitar o Anel Inferior? — sonha ela. Pra ela e pra Vovó Wen, conhecer o Avatar seria a chance de continuar aquela tradição. Ver com os próprios olhos. Ter uma história pra passar adiante.

Mas ela logo se desanima. — Duvido. Vão esconder ele antes que alguém chegue perto.

— Difícil imaginar o Avatar sendo da nossa idade. Tipo… amanhã ele aparece andando com os amigos, igual ao grupo da Naki — rio, pensando no Avatar como um dos garotos metidos dos Becos da Serpente. — Mas talvez rolem festas.

— Festas… — Susu suspira, entrando na brincadeira. — Eu vou com um vestido verde. Aquele da loja da Madame Von, da cor das folhas de primavera.

Os vestidos da loja são caros demais pra gente. Eu provoco:

— Eu vou estar ocupada comendo tortinhas de ovo douradas como o sol.

Ela me dá um tapinha no ombro e ri. Ela sonha com os vestidos e penteados do Anel Superior, os rostos maquiados. Eu só penso nos restaurantes do Anel Médio — será que são mesmo melhores do que as barraquinhas do nosso lado?

— Um dia a gente vai nas festas! — ela grita, apontando pro céu. — Vamos nos arrumar, conhecer o Rei da Terra e comer pato assado no palácio real!

— Festa do pato assado? — rio. — Isso existe?

— Existe se a gente disser que existe! — ela joga o cabelo pra trás.

— E depois da festa, o Rei da Terra faz um anúncio… — entro na brincadeira. — Vai conceder um desejo pra cada uma! O que você pediria?

Susu pensa, agora séria. Se levanta, com a capa escorregando dos ombros, e declara para os telhados:

— Quero uma loja de verdade. Com vitrine na frente, igual as padarias do Anel Superior. Com balcões fechados, sem risco de inseto. Um depósito sem ratinhos esquilos.

— Eu quero um apartamento — me levanto também, meio desequilibrada, e ela me puxa antes que eu caia. A gente ri. Começo falando baixinho, mas a voz vai crescendo conforme imagino. — Um apê com vista pra universidade no Distrito do Bosque. Que não tenha vento passando pelas frestas. Fresquinho no verão, quentinho no inverno. Com árvores por perto. Um jardim só nosso. Dois, não, três quartos! Um pro Gong-gong, um pra mim, e um só pro estudo de caligrafia dele.

— Também quero um apartamento. Longe da padaria, pra roupa não ficar cheirando a queimado — continua Susu. — Uma casa de dois andares. Eu fico em cima com a Ming quando ela crescer. Mamãe e Vovó ficam cada uma no seu quarto embaixo. Mas… — ela me cutuca com o quadril — vamos ser vizinhas?

— A gente divide o jardim — digo. — Não me importo. À noite, ainda vou pular do meu telhado pro seu.

Susu me puxa e gira meu corpo, até ficarmos olhando pro Anel Superior, com o palácio lá longe. Os lampiões e janelas brilham como estrelas, iluminando o caminho. Estrelas em cima e embaixo. Estamos no topo do mundo, só nós duas.

— Um dia! — ela grita, me abraçando pelos ombros. Minha amiga maravilhosa, que merece tudo de bom. O sorriso dela brilha mesmo no escuro. — A gente vai conseguir. Você vai ver!

— Um dia! — grito de volta, lançando nossos desejos pro mundo. Acreditando que, sim, um dia tudo vai dar certo.

— Quietas aí em cima! — grita alguém lá de baixo, enquanto um bebê chora. — Estão fazendo barulho demais!

A gente se encara, segurando o riso, e começa a juntar as sacolas e a capa antes de descer de volta pra realidade.

— Te vejo amanhã — digo no patamar da escada. Ela me dá um abraço rápido e desaparece escada abaixo.

Fico ali mais um instante, aproveitando a brisa. Com a barriga cheia e o coração também. Mesmo que eu tenha vindo pra Ba Sing Se contra a vontade… às vezes, eu admito que não é tão ruim assim.

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Chapter 4