— Tenho uma bandeja pra entregar na casa da Lady Liang — diz Susu quando eu a alcanço na esquina onde o distrito se divide em duas ruas principais. — Te encontro de volta na casa do Pao.
Ela parte em direção à Rua dos Toldos, onde tecidos coloridos balançam levemente sobre as lojas. A casa da Lady Liang é uma das mais elegantes dali. Lá vendem leques pintados à mão para que os clientes do Anel Superior os abanem com graça nos banquetes. Enquanto escolhem seus leques, oferecem docinhos da Padaria Wen. Eu sigo pela outra rua: Rua das Lanternas — nome certeiro — onde lanternas coloridas cruzam o céu em padrões bonitos.
Essas duas ruas são o lugar das lojas mais requintadas: artesãos cujas peças têm preços altos e atendem quem mora no Anel Médio e Superior. Pao’s fica numa rua lateral, uma casa de chá frequentada por guardas e entregadores — gente que mantém tudo funcionando. O ambiente lá é bem mais tranquilo que as casas de chá de dois ou três andares do Anel Médio, com música, dança e chá.
Bato na porta dos fundos e o Gerente Fung, sempre carrancudo, logo a abre.
— Você está atrasada — ele diz rispidamente. Eu tiro a mochila pesada e apoio em um balcão.
Fico em silêncio enquanto solto as alças pra tirar as bandejas. Ele costuma pedir os doces mais secos, pra galera acabar tomando mais chá. Examina cada um com muito cuidado. Sei que se alguma for amassada ou pintada fora do lugar, ele vai exigir desconto. O nariz fica se remexendo durante a inspeção — Susu o apelidou de “baratão” — porque parece rato ou baratinha saindo do esgoto depois da chuva de verão.
— Hein? Disse alguma coisa? — ele rosna quando me vê sorrindo repressa atrás da mão.
Nego com a cabeça e fico sério. — Não, senhor.
— Estão boas, mas falta o outro pedido: bolinhos de marmelo, rolinhos de taro e bolinhos-sola com gema dentro. — Ele mostra a lista.
— Ela chega já já — tento soar tranquila. — Tá quase na rua, terminando outra entrega.
— Tá melhor que chegue logo. — Ele se afasta e estala os dedos, gritando pro salão: — Ei, garoto! Vai lá e ajuda logo!
Um rapaz com avental aparece, de cara fechada. O cabelo arrepiado e um grande cicatriz no rosto, perto do olho esquerdo. A pele está queimada e a orelha deformada.
— O que tá olhando? — ele rosna pra mim quando cruza meu olhar. Dou de cara, envergonhada. Ele passa por mim e quase me derruba.
— Vai lá pôr isso nas mesas. Os clientes vão chegar — diz o gerente ao garoto.
Eu murmuro desculpas e pego o rumo da viela. No portão, um guarda encostado tenta flertar com a Susu. Ele joga a cabeça de lado, bem confiante, mas Susu claramente não está nem aí. Mesmo assim, ele insiste.
— Jin! — Susu me vê e chega rápido, pisando no pé do guarda sem querer. — Desculpa aí! — diz ela, e o guardinha salta de dor.
— Mais um admirador? — brinco.
— Não dá pra evitar, estão fascinados pelo meu estilo — Susu vira, mostra o grande pacote de entregas, joga um olhar todo simpático e se diverte com os olhares enfeitiçados. O jeito como ela sorri faz você sorrir de volta — por isso ela conquista quem quiser.
Ela vai terminar a entrega lá dentro. Aposto que vai encantar o Gerente Fung de um jeito que eu nunca conseguiria pra evitar descontos. Eu fico esperando na porta. O guarda rejeitado e os colegas sentados no banco riem da cena — bem humilhados.
— Tem dois atendentes novos no Pao’s — ela aparece e joga um saquinho de moedas na minha mão. — Você os conheceu?
— Quase não — digo. Aquela cara cicatrizada me veio à cabeça outra vez. Será que ele enfrentou a Nação do Fogo?
Susu me dá um olhar esperto. — O mais novo é meio bonitinho, né?
— Ih… — meu rosto esquenta. — Não sei.
— Olha isso! — ela zoa, atraindo olhares dos guardas. — Minha Jin tá vermelhinha?
— Para!
Ela percebe os guardas olhando e acena. Eles caem na gargalhada, e o guarda rejeitado parece querer sumir. Aproveito o momento pra puxar Susu dali e evitar que o outro saía atrás da gente — ia me envergonhar mais ainda.
— Preciso passar na botica — digo enquanto atravessamos a Rua dos Toldos. — O Gong-gong vai precisar do próximo remédio.
— Não esquece sua parte — ela diz, colocando moedas na minha mão enquanto tento recusar, mas sempre acaba ficando. Já desisti de brigar. — Vai pro jantar hoje?
— Não. Preciso preparar o remédio à noite. Te vejo amanhã pra… — faço suspense.
— Dia do bolinho de cookie! — gritamos juntas, ergue os braços. É o dia mais esperado da semana. Os bolinhos de cookie só saem no fim de semana, porque dão mais trabalho, mas o cheiro da padaria atrai todo mundo do bairro.
Essas pequenas alegrias tornam a vida na cidade suportável. Ajudam a não pensar no que deixamos pra trás.
Corto caminho pelas vielas estreitas, onde carroças mal passam. Paredes com portas pra casinhas apertadas ou lojinhas minúsculas. Um barbeiro corta cabelo e fuma, num espaço que mal cabe duas pessoas. Uma mulher sentada faz tiras de couro pra cintos. Há uma parede coberta de trepadeiras, com plantas em cestos pendurados. Susu me mostrou cedo que alguns becos são seguros só em certos horários — quem demora a aprender leva uns dias de barriga vazia e bolso vazio pra entender.
Chego à botica Hu Yuan, numa rua movimentada. Desvio de uma carroça de última hora. Entro e o cheiro forte e terroso me alcança. Balcões brilham ao redor, com prateleiras cheias de gavetinhas bem rotuladas. A equipe pega os ingredientes enquanto o cliente espera no meio do salão. Na parede do fundo, uma placa de madeira com letras douradas diz: “RIO DE CURAS CORRE AQUI E MONTANHAS RESISTEM À TEMPESTADE”. Gong-gong adora a caligrafia fluida nas colunas — ele sempre aponta pra elas quando vamos lá.
Tô ofegante, correndo pra chegar antes do fechamento. Dois rapazes da minha idade estão encostados de lado, folheando um folheto, mas não estão na fila. Espero atrás de uma senhora e observo cada movimento dos atendentes — eles sobem escadas móveis pra abrir gavetas específicas, param pra conferir a lista.
Na vila onde cresci, Daying, a gente tinha um curandeiro viajante com um baú de remédios num carro puxado por cavalo-aveestruz. Ela fazia poções sobre o fogo num pote de barro. Sempre achei isso fascinante. Mas as boticas de Ba Sing Se são outra coisa. Dentro, tem ervas secas, mas também frascos com ingredientes únicos: rãs de madeira, dentes de gato-jacaré, garras de iguana-papagaio… acho que tudo quanto é remédio no mundo se encontra por aqui.
— Em que posso ajudar? — diz uma voz ríspida, tirando-me do devaneio. Levanto os olhos pra atendente. Ele é sério, com sobrancelhas grossas, olhos castanhos e alta sobrancelha — padrão de estudante. Mais novo que quem costuma me ajudar.
— Hum… pedido para Guan — digo, já com a mão dentro da bolsa, vasculhando entre os pergaminhos pra achar a bolsinha de moedas que eu tinha deixado ali. Consigo ouvir o rangido da gaveta quando ele procura entre os pacotes de remédio já preparados. Mas minha mão não encontra o tecido áspero e familiar da bolsinha.
Quando levanto a cabeça, o garoto está me olhando, esperando.
— Você já tomou isso antes? — pergunta, com um tom entediado, enquanto recita os ingredientes escritos na embalagem.
— É… só um momento. — Tiro meus pergaminhos e coloco no balcão. Viro a bolsa do avesso, mas não tem bolsinha nenhuma. Deve ter caído em algum momento do dia. Talvez na escola. Ou durante as entregas.
Enfio a mão nos bolsos e pego as moedas que Susu tinha me dado mais cedo. Coloco todas no balcão, mas já sei que não vai ser o suficiente.
— Isso… isso é tudo que eu tenho. — Empurro as moedas na direção dele, torcendo pra que ele entenda que não estou tentando conseguir as coisas de graça. — Dá pra aceitar isso como adiantamento? Eu posso voltar no começo da próxima semana e pagar o restante.
É isso que eu ganho por deixar tudo pra última hora.
O garoto hesita, franzindo a testa como se aquilo fosse nojento. Sinto a vergonha subir pela nuca.
— Por favor — continuo, odiando o som de desespero na minha voz. — Meu avô precisa desse remédio hoje. Ele não pode ficar sem isso por dois dias. Por favor. Fala com a doutora Jan. Ela conhece ele. E me conhece também. Eu sempre pago minhas dívidas.
Ele suspira e abre a boca como se fosse responder, mas nunca descubro o que ia dizer — porque, de repente, dois rapazes se encostam de cada lado de mim.
Um deles se apoia com o cotovelo no balcão. O outro, mais alto, abre um sorriso maldoso. Me olham como se eu fosse um pedaço de carne pendurado na barraca do açougue.
— Que demora é essa, Xuan? — provoca o mais alto.
— Vamos perder o espetáculo — comenta o outro, mais baixo. — Por que você não ajuda ela logo, Xuan?
Xuan olha de um pro outro, claramente irritado.
— Quer saber? — o mais alto ri. — Já que você vai ajudar ela, por que ela também não te ajuda? Dá um beijo nele.
— Faz valer a pena — o mais baixo acrescenta, fazendo beicinho e mandando beijos no ar. — Nosso amigo aqui nunca deve ter sentido o toque de uma mulher.
Meu rosto queima — mas por outro motivo agora.
— Chega! — A expressão de Xuan é furiosa. Ele se inclina sobre o balcão e me encara, os olhos brilhando. — Se não tem dinheiro, volta na semana que vem!
Ele se vira e tenta pegar o pacote, mas sou mais rápida. Bato a mão por cima e seguro firme. Sinto a raiva subir.
— Pare! — digo, em voz alta. — Escuta! Eu sou cliente fiel. Venho aqui toda semana. Fala com a doutora Jan!
— Isso aqui não é caridade — rosna Xuan, puxando o pacote da minha mão e me lançando um olhar sujo. — Vai embora.
Um dos rapazes ao lado assobia baixo, num tom zombeteiro. As lágrimas de indignação ameaçam vir, mas as seguro mordendo o lábio e virando de costas.
Não vou deixar que me vejam chorar.
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