Os dias seguintes passaram num piscar de olhos. O dia do pão doce sempre é uma correria — termino com os braços e pulsos doendo de tanto abrir massa pra aquele tipo especial de pão e as várias coberturas. Meu cabelo fica colado de suor depois de carregar bandejas pra lá e pra cá na loja. No dia seguinte, passo a maior parte do tempo ajudando o Gong-gong com suas encomendas e empacotando os rolos para entrega, garantindo que cada um esteja devidamente identificado.
Enquanto espero na fila pra pegar nosso jantar em uma das barracas, massageio o pescoço tentando soltar os nós. Tempo demais curvada sobre a mesa por vários motivos. Escuto casualmente os boatos sobre o Avatar, que agora estão em todo lugar por onde passo. A empolgação está tomando conta da cidade. Os rumores se multiplicaram por cem desde a noite em que Susu me contou sobre o aparecimento dele. Dos alunos da academia às tias nas ruas, todo mundo fala sobre seu avistamento pessoal do Avatar. Disseram que ele fez um tour pela cidade ontem e hoje, guiado por um representante do Reino da Terra.
— Uns dizem que ele é um brutamontes! — um garoto levanta os braços e rosna como um urso.
— Nada! Minha irmã diz que ele é baixinho e magro, mas com olhos azuis elétricos que leem mentes! — solta outro garoto.
— Eu vi ele — diz um homem nervoso, sentado ao lado do seu carrinho de repolhos. Levanta os olhos da tigela de arroz. — É só um garoto correndo com os amigos, causando confusão. Essa cidade tá perdida se ele chegou até aqui.
— Como se o senhor tivesse visto ele mesmo, velho! — gritam os garotos, irritados por ele ter atrapalhado a diversão. Começam a jogar castanhas na cabeça dele.
— Eu vi sim! — resmunga o homem, indignado, desviando das castanhas. Mas os garotos continuam zombando, enquanto suas mães conversam, alheias à bagunça.
Os boatos sobre a aparência do Avatar continuam circulando até que recebo minha comida. Volto pelo caminho mais calmo, passando pela frente do Pao’s pra chegar no meu bairro.
Mas hoje, ao atravessar os comércios quase todos fechados, ouço um estrondo vindo de dentro de um prédio que me faz pular.
Apresso o passo, sabendo que não é seguro ficar por perto quando rola uma briga em Ba Sing Se. Mas já é tarde demais. Uma porta explode bem na minha frente, e um corpo é lançado pra rua. Ele atinge o chão com força, escorregando de costas por causa do impacto. Uma figura escura aparece em seguida, com uma espada erguida acima da cabeça. Ela cai em arco ameaçador. Cubro a boca com a mão pra não gritar, com medo de me notarem e virarem a arma contra mim.
Mas a figura caída no chão não está indefesa. As espadas se cruzam, o som ecoa no ar.
— Por favor, para! Você tá confundido! Você não sabe o que tá fazendo! — grita alguém da porta da casa de chá. A confusão atrai até os vizinhos — janelas se abrem, pessoas se inclinam pra assistir à briga.
Dou um passo pra trás pra tentar evitar o que quer que seja aquilo, mas mais gente começa a encher a rua, atraída pelo barulho, bloqueando a saída. Os dois duelam com suas armas. Um empunha lâminas longas com ganchos na ponta, o outro tem espadas duplas com lâminas curvas. Eles se aproximam e se afastam, girando no ar como se fosse uma dança macabra. Passam sob a luz de um poste, revelando seus rostos.
O jovem sendo atacado é o novo atendente da casa de chá. Aquele da cicatriz.
Numa exibição surpreendente de acrobacias, o rapaz com as espadas de gancho salta para dentro do poço na praça. É mais ou menos da mesma idade do atendente.
— Estão vendo isso?! — ele grita, se dirigindo à multidão. — A Nação do Fogo está tentando me silenciar!
Todos se entreolham, inquietos. Nação do Fogo? O que isso tem a ver com essa luta? O garoto no poço salta de novo e tenta atingir o atendente. Eles giram no ar, as faíscas voam a cada golpe, a multidão prende a respiração a cada choque. Gerente Fung grita irritado, tentando fazê-los parar, mas ninguém presta atenção.
— Se ele é da Nação do Fogo, por que não queimou o outro até agora? — murmura um dos espectadores.
— Olha pra cara dele; ele foi queimado — comenta uma das tias, mais atenta que os outros. — Ouvi dizer que são refugiados…
Está claro quem está sendo atacado e quem se defende. Mas os guardas — que deveriam interromper a briga — apenas observam, de braços cruzados. É assim que eles tratam esses confrontos, ou “conflitos interpessoais”, como chamam aqui no Anel Inferior. Esperam que a gente resolva tudo sozinho. Só aparecem quando corre sangue.
A luta parece interminável, até que ouço passos se aproximando por trás. A multidão se abre, revelando figuras que sempre trazem um ar ameaçador. Uniformes escuros, chapéus de aba larga e o símbolo verde e dourado do Reino da Terra no peito.
Os Dai Li.
Esse é o tipo de oficial que a Susu me avisou pra evitar. O título oficial deles é “Protetores Culturais de Ba Sing Se”, mas todos sabem que eles trabalham diretamente pro Rei da Terra como seus executores. Todo mundo sabe que é por causa deles que ninguém pode falar da guerra contra a Nação do Fogo. Se falar… pode desaparecer.
— Larguem suas armas! — ordenam com autoridade.
— Prendam eles! — grita o garoto agressivo, apontando pros dois em frente à casa de chá. — Eles são dobradores de fogo!
— Esse garoto está confuso — diz o homem mais velho, barrigudo, de barba cinza e avental do Pao’s. Deve ser parente do rapaz mais novo. — Somos apenas refugiados…
— Esse rapaz destruiu minha casa de chá e agrediu meus funcionários! — grita o gerente Fung, agitando os braços em protesto, finalmente sendo ouvido.
— É verdade, senhor — confirma um dos guardas, com certo embaraço. — Vimos tudo.
Enquanto não faziam nada, penso, mas não digo em voz alta.
— Esse garoto maluco atacou o melhor mestre de chá da cidade! — acrescenta o guarda.
— Ah, que gentil — responde o homem barbudo, sorrindo, satisfeito com o elogio, embora alguns na multidão lancem olhares confusos.
— Venha conosco, filho — ordena um dos Dai Li, mesmo com o garoto olhando ao redor, assustado. Ao perceber que não tem pra onde fugir, ele ataca com as espadas de gancho — mas os Dai Li são mais rápidos. Com os punhos de pedra, o desarmam e o imobilizam com os braços presos atrás das costas.
— Vocês não entendem! Eles são da Nação do Fogo! — o jovem começa a gritar, olhos arregalados, olhando de um lado pro outro. Suplica por alguém que acredite. — Por favor, acreditem em mim!
As expressões da multidão variam entre nojo e pena, mas ninguém se move pra confirmar o que ele diz. Ele é arrastado até uma carroça à espera.
Fico observando o atendente com a cicatriz, e o pensamento me invade: como saber se alguém é ou não da Nação do Fogo? E se eles já estiverem entre nós, observando, esperando? A ideia me dá calafrios. Ba Sing Se parece um vaso frágil, com rachaduras começando a surgir. Quando cheguei, me perguntei quanto tempo demoraria até a guerra alcançar essas muralhas. Talvez esteja começando agora…
O baque da porta da carroça se fechando ao longe é como um ponto final. O som das rodas levando o prisioneiro e os Dai Li embora ecoa pela rua.
— Acabou! Vão pra casa! — gritam os guardas. A multidão se dispersa, mesmo que alguns ainda cochichem entre si.
— Ba Sing Se está segura! Estão todos a salvo!
Volto pra casa com nossos jantares frios, ainda abalada com o que presenciei. As acusações ecoam nos meus ouvidos: Eles são dobradores de fogo!
Na manhã seguinte, vou até os Wens antes de começar minha semana na academia, ansiosa pra contar à Susu o que vi na frente do Pao’s na noite anterior. Mas, pra minha surpresa, não há fila de clientes esperando os pedidos. Em vez disso, as portas estão fechadas, as janelas com as cortinas abaixadas.
Fico tensa ao empurrar o portão pra entrar pelos fundos, me perguntando se houve algum atraso.
O que encontro lá atrás é pior: os fornos estão todos apagados. Nenhuma chama. Nem mesmo um brilho. Vovó Wen deveria estar lá, supervisionando, mas tudo está em silêncio. Nem Yang, o garoto que costuma ajudar com as tarefas pesadas, está fazendo algo útil — só quicando uma bola na cerca, ignorando seus deveres.
— Por que a padaria está fechada? — aceno pra Yang.
— Não sei — ele dá de ombros. — Mas ouvi muito choro vindo do andar de cima.
Subo as escadas de dois em dois, minha mente já inventando mil cenários. Será que Vovó Wen caiu? Ou a Bebê Ming tropeçou e bateu a cabeça? A vida pode mudar num instante. Num dia está tudo bem, no outro a Nação do Fogo queima tudo o que você ama.
Bato na porta. Está entreaberta. Empurro com mais força.
Os rostos dos Wens estão transtornados. Bebê Ming enterra o rosto no ombro de Mamãe Wen. Vovó Wen olha pela janela, de braços cruzados. Susu se vira pra mim, com a expressão mais severa que já vi nela.
Olho cada uma, tentando ver se alguém se machucou. Por fora, estão todas bem. Mas por dentro… sei que algo está muito errado.
— Eu… — Então percebo os olhos vermelhos da Mamãe Wen. O rosto da avó se fecha. Susu caminha até mim e segura minha mão.
— O que aconteceu? — pergunto, incomodada com o silêncio.
— Recebemos uma má notícia — diz Mamãe Wen, com a voz trêmula. Ela geralmente é a mais centrada — resolve tudo, organiza tudo, mantém tudo funcionando. Mas agora parece sobrecarregada. Anda de um lado pro outro, puxa Bebê Ming pra longe de qualquer perigo, cobra Susu… nunca a vi tão… abatida. Nem quando clientes gritavam com ela enquanto algo queimava nos fundos da loja.
— Papai está preso por comportamento perturbador — diz Susu, com a voz vazia. Isso já aconteceu outras vezes — depois de beber e falar com as pessoas erradas.
Susu percebe minha confusão e continua:
— O idiota teve um ataque e tentou estrangular o Oficial Xiang quando ele veio cobrar a dívida de jogo.
Ela tenta manter a compostura, mas a raiva quase transborda.
— Susu! — repreende Mamãe Wen. — Ele é seu pai!
Susu gira nos calcanhares, confrontando a mãe.
— Aquele homem não é meu pai — cospe, finalmente explodindo. — Ele só faz o que quer, quando quer, estragando tudo com bebida e jogo, mas dessa vez foi longe demais. Não estragou só a própria vida — arruinou a de todos nós!
Mamãe Wen parece prestes a dizer algo, mas Vovó Wen levanta a mão e a interrompe.
— Minha neta está certa — diz com voz pesada. — Esse traste só causou problemas. A única coisa sensata que fez foi casar com uma mulher de cabeça no lugar.
Só cruzei com o Senhor Wen algumas vezes, sempre tropeçando dentro ou fora de casa, com bafo de vinho. Sempre me tratou com desprezo. Quando está de mau humor, comenta que sou só mais uma boca pra alimentar. Mamãe Wen sempre me diz que sou bem-vinda. Mesmo quando ele tenta agir como o dono da casa, eu nunca fico muito tempo se ele estiver por perto.
— Mas o que ele fez, exatamente? — pergunto, tentando entender.
— Ele colocou a padaria como garantia — diz Susu, com desprezo. — Achou que ia ganhar tudo. Que ia trazer fortuna. — Ela revira os olhos. — A padaria nunca foi dele, mas Ba Sing Se é uma cidade que só reconhece os homens. Nunca as mulheres que mantêm tudo funcionando. Eu odeio este lugar. Odeio suas regras ridículas.
Nem Mamãe Wen tem resposta. Apenas balança a cabeça.
— Mas… se vocês perderem a padaria… o que vai acontecer? — já temo a resposta, antes mesmo de terminar a frase.
— Eu não vou deixar levarem a padaria — Susu cruza os braços, a voz firme de novo. — Eu tenho um plano.
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